Capacitação dos Servidores Públicos para a Era Digital

 

A capacitação dos servidores públicos para a era digital é um tema de crescente relevância, impulsionado pela necessidade de modernizar a administração pública e otimizar a prestação de serviços à população. O Brasil, apesar de ocupar a 51ª posição no ranking de competitividade digital em 2021, tem uma estratégia de governo digital desde 2020, com a meta de digitalizar 100% de seus serviços públicos, conforme a Lei nº 14.129, de 2021. No entanto, alcançar essa transformação exige um corpo de servidores preparado para os desafios da era digital.

A Imperativa Necessidade de Capacitação na Era Digital

A inteligência artificial (IA) e outras tecnologias digitais oferecem oportunidades significativas para a administração pública, prometendo ganhos de eficiência e agilidade no desenvolvimento de atividades e na otimização da gestão de processos. O uso da IA pode abranger desde serviços simples como chatbots para esclarecer dúvidas frequentes dos cidadãos, liberando agentes públicos para demandas mais complexas, até a robotização de procedimentos e o processamento de grandes volumes de informações para agilizar julgamentos. Exemplos concretos no setor público brasileiro incluem ferramentas como "ALICE" para análise de licitações e editais (CGU e TCU), "Dra. Luzia" para execução fiscal (PGDF), "Sócrates" e "Victor" para apoio à elaboração de decisões e gestão processual (STJ e STF), "Bem-Te-Vi" para gerenciamento de processos judiciais (TST), e "Elis" para triagem de processos fiscais (TJPE). Essas iniciativas demonstram que a IA tem auxiliado a justiça do país essencialmente do ponto de vista dos procedimentos operacionais.

Apesar dos benefícios evidentes, a transição para a era digital no setor público enfrenta uma série de desafios, sendo um dos mais proeminentes a falta de preparo dos servidores e empregados públicos para lidar com essas mudanças digitais. Essa deficiência se manifesta como um verdadeiro analfabetismo digital, impactando seriamente a capacidade de transformação digital da administração pública. Pesquisas indicam que uma considerável parcela de agentes públicos possui pouco conhecimento ou interesse em tecnologia e IA.

Outros obstáculos incluem:

  • Resistências corporativas e falta de capacidades institucionais: Há receio por parte dos agentes públicos em relação às ameaças ao mercado de trabalho, com a crença de que a IA pode extinguir postos de trabalho. Embora a automação possa aumentar a produtividade e otimizar o tempo das pessoas, ela impõe mudanças e exige uma requalificação profissional para atender às novas necessidades e permitir o convívio com as máquinas.
  • Obstáculos de gestão e organizacionais: Estes desafios envolvem estratégia, recursos humanos e as práticas de gerenciamento de cada organização pública na adoção da IA.
  • Infraestrutura tecnológica e digitalização de acervos: A ampliação do processo de digitalização e a integração dos diversos sistemas são entraves significativos para o avanço da IA no setor público brasileiro.
  • Questões éticas e de governança: A opacidade do processo decisório por meio de algoritmos levanta preocupações sobre a transparência e a legitimidade democrática. Existe uma grande probabilidade de vieses algorítmicos, pois os dados processados pelos computadores são extraídos da realidade social, que pode conter discriminações e injustiças, replicando ou potencializando comportamentos discriminatórios. Isso ressalta a necessidade de regulamentação para garantir a neutralidade dos algoritmos e um tratamento responsável e cuidadoso das bases de dados.

Iniciativas de Capacitação no Brasil

Para enfrentar esses desafios, o governo brasileiro tem implementado e promovido programas de capacitação:

  • Estratégia de Governo Digital (Decreto 10.332/2020): Visa possibilitar que os usuários dos serviços públicos realizem suas demandas por canais digitais de forma simplificada, segura e acessível.
  • CAPACITA GOV.BR: Este programa, focado em servidores públicos federais e em parceria com a Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), busca melhorar as habilidades do funcionalismo. Seus objetivos são tornar a administração pública mais eficiente e moderna, capacitando os servidores para aprimorar os serviços e liderar a transformação digital. O programa oferece cursos e treinamentos em diversas áreas temáticas, incluindo Ciência de Dados, Transformação Ágil, Liderança e Inovação, Governança e Gestão de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), Alta Tecnologia, Serviços Digitais e Segurança e Privacidade.
  • Programa Mentalidade Digital (Escola Virtual de Governo): Este programa visa desenvolver a competência de "Mentalidade digital", que é a capacidade de integrar tecnologias digitais com modelos de gestão, processos de tomada de decisão, geração de produtos e serviços, e meios de comunicação interna e externa. Ele enfatiza a mudança do modo convencional de se relacionar com o trabalho para uma mentalidade que aproveita as oportunidades das novas tecnologias, exigindo compromisso constante com o aprendizado e adaptação. Cursos específicos como "Inteligência Artificial no Contexto do Serviço Público" e "Inteligência Artificial Generativa" são exemplos de iniciativas oferecidas.

Resistências à Capacitação Digital e o Papel das Soft Skills

Um estudo sobre resistências ao e-learning na capacitação de servidores públicos (Mendes, 2021) revelou achados importantes que se alinham aos desafios percebidos na adoção da IA:

  • Autoeficácia e gerenciamento de tempo: Embora muitos servidores demonstrem bom rendimento e disciplina em estudos autônomos via e-learning, outros tendem a procrastinar e sentem necessidade de interação presencial.
  • Expectativa de desempenho: A maioria dos servidores percebe ganhos de utilidade com o e-learning para sua progressão na carreira e produtividade no trabalho.
  • Facilidade de uso vs. complexidade: A usabilidade do sistema e-learning é geralmente considerada fácil e intuitiva, mas há relatos de complexidade para aqueles com menos habilidades digitais, o que pode gerar resistência.
  • Interatividade e feedback: Uma baixa interatividade e entrosamento nos cursos e-learning, juntamente com feedback e monitoramento limitados dos professores, foram apontados como barreiras. Isso se deve, em parte, ao formato assíncrono das capacitações e à ausência de tutores ativos.
  • Condições técnicas e organizacionais: Há facilidade de acesso ao suporte técnico, e o sistema é visto como possuindo os recursos necessários, embora a falta de alguns recursos e materiais possa afetar a usabilidade. Incentivos para o conhecimento próprio, a carreira e a comodidade/flexibilidade são percebidos como fatores que estimulam a participação.

Além do treinamento técnico em IA e ferramentas digitais, é crucial o desenvolvimento de soft skills (habilidades comportamentais) nos servidores públicos. Estas habilidades vão além do conhecimento técnico e são essenciais para moldar a forma como os servidores se relacionam e interagem com os cidadãos e colegas.

As soft skills são fundamentais para:

  • Atendimento de qualidade: Elas são a ponte que garante um atendimento de qualidade e uma comunicação clara, criando um vínculo que transforma a experiência do cidadão e resulta em um serviço público mais eficiente e humano.
  • Ambiente de trabalho harmonioso: O desenvolvimento dessas habilidades contribui para um ambiente de trabalho mais produtivo e colaborativo, lidando com situações de estresse e pressão.
  • Gestão de conflitos: Servidores com habilidades de gestão de conflitos podem resolver problemas e evitar que se agravem, transformando momentos tensos em conversas produtivas.
  • Inteligência emocional: Permite que o servidor mantenha a calma em situações difíceis, gerencie suas próprias emoções e compreenda as dos outros, criando conexões autênticas e construindo relações de confiança.
  • Comunicação eficaz e empatia: A capacidade de se comunicar claramente, usar linguagem simples e praticar a escuta ativa são cruciais para informar a população, esclarecer dúvidas e demonstrar que se importa com as necessidades do cidadão.
  • Resiliência: Essencial para professores e outros profissionais que enfrentam desafios diários, ajudando a manter a calma e encontrar soluções criativas em situações adversas.

A percepção de que a IA pode substituir o agente público em grande parte das atividades ainda gera receio. No entanto, a adoção da IA no setor público pode ser vista como indutora de melhorias na eficiência, exigindo que a administração pública se modernize e prepare sua força de trabalho para novas habilidades e convivência pacífica e produtiva com a inteligência artificial.

Conclusão

A era digital impõe à administração pública brasileira a necessidade urgente de uma transformação que vá além da simples implementação de novas tecnologias. É um processo que exige a capacitação contínua dos servidores públicos, tanto em habilidades técnicas relacionadas à IA e à digitalização quanto em soft skills essenciais. Os programas governamentais como o CAPACITA GOV.BR e Mentalidade Digital são passos importantes nesse caminho. Superar as resistências ao e-learning, investir em infraestrutura tecnológica e promover o desenvolvimento de habilidades comportamentais são cruciais para garantir que a administração pública possa aproveitar plenamente os benefícios da IA, melhorar a qualidade dos serviços e atender às crescentes demandas da sociedade por um governo mais eficiente, ágil, transparente e humano.

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