As políticas governamentais brasileiras buscam aproveitar o potencial das tecnologias digitais para aumentar a produtividade, competitividade e os níveis de renda e emprego em todo o país, visando a construção de uma sociedade livre, justa e próspera. As tecnologias digitais estão cada vez mais integradas à vida diária, e para que o Brasil beneficie plenamente dessa revolução, a economia nacional precisa se transformar, absorvendo a digitalização em seus processos, valores e conhecimento, com dinamismo, competitividade e inclusão.
Nesse contexto, a Estratégia Brasileira para a Transformação Digital (E-Digital) foi elaborada como uma iniciativa do Governo Federal, coordenada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), com ampla participação da administração pública, setor produtivo, comunidade científica, acadêmica e sociedade civil. A E-Digital busca coordenar diversas iniciativas governamentais sobre o tema com uma visão unificada e sinérgica, sendo concebida como uma política pública "viva", sujeita a acompanhamento, avaliação e ajuste contínuos. A estratégia se estrutura em eixos habilitadores e eixos de transformação digital, que englobam a transformação digital da economia e a transformação digital do governo com vistas ao pleno exercício da cidadania digital. O autor Wender Rodrigues de Siqueira, doutorando em Administração pela Universidade de Brasília e professor da Universidade Federal de Catalão, destaca a transformação digital do governo como um de seus temas de atuação.
Um dos eixos habilitadores cruciais da E-Digital é a infraestrutura e o acesso às Tecnologias de Informação e Comunicação. O Brasil enfrenta um duplo desafio na expansão das redes de banda larga: por um lado, é necessária a ampliação da infraestrutura de redes de transporte de dados em fibra ótica para os backbones nacionais; por outro, é preciso ampliar as redes de acesso fixa e móvel. Embora a quantidade de acessos tenha evoluído, há concentração regional. A expansão da infraestrutura deve envolver tanto o aumento da capacidade das redes nos centros urbanos quanto a maior capilaridade em áreas de menor densidade, como distritos não-sede e áreas rurais, utilizando diversas tecnologias. Iniciativas como a utilização de recursos oriundos de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) de operadoras e saldos da adaptação do modelo de concessão são vistos como possibilidades concretas de investimento. A atualização da legislação do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST) para permitir seu uso na expansão da banda larga é considerada importante, assim como a revisão do modelo de precificação de radiofrequências. Projetos específicos como o Amazônia Conectada, que implanta cabos subfluviais para prover infraestrutura no Norte, o Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas (SGDC), para atender áreas não contempladas por infraestrutura terrestre, e o cabo submarino Brasil – Europa, para auxiliar na distribuição de tráfego internacional, são exemplos de ações para superar esses desafios. A elaboração de um roadmap para a tecnologia 5G, o fomento à P&D, e o reforço do diálogo com a iniciativa privada também são mencionados. Os Pontos de Troca de Tráfego (IXP), como o de São Paulo, que é um dos cinco maiores globalmente, são elementos importantes na arquitetura de redes, contribuindo para a robustez e disseminação da Internet. O uso de espectro não-licenciado, como em redes Wi-Fi, tem sido amplamente adotado, inclusive por pequenos prestadores de serviço, e pode impulsionar os objetivos da Estratégia. O acesso Wi-Fi em locais públicos e em escolas (Programa Banda Larga nas Escolas) é um instrumento de inclusão digital. O relatório do TCU sobre a Política Pública de Inclusão Digital destacou ações passadas como o GESAC e projetos como Cidadão Conectado e PNBL, mas também apontou a carência de alfabetização digital e a dificuldade de coordenação entre órgãos como entraves. O Programa Cidades Inteligentes do MCTIC visa implantar infraestrutura de fibra óptica urbana para conectar órgãos públicos e oferecer acesso público à Internet. A visão para o futuro da infraestrutura digital inclui todos os municípios atendidos com redes de alta capacidade e banda larga móvel/fixa.
Outro eixo habilitador é a Confiança no Ambiente Digital, com o objetivo de tornar a Internet um ambiente seguro e confiável, respeitando os direitos dos cidadãos. O Marco Civil da Internet estabelece princípios, garantias, direitos e deveres, e reforça o compromisso brasileiro com a proteção dos direitos humanos na rede. No entanto, à época da fonte, o Brasil ainda não possuía uma lei abrangente de proteção de dados pessoais, apesar da circulação global de grandes volumes de dados ("free flow of data"). A segurança cibernética é encarada como prioridade nacional diante da expansão da Internet e do crescimento da Internet das Coisas, que aumentam as vulnerabilidades. Há a necessidade de revisar e integrar a legislação de crimes cibernéticos. A Política Nacional de Segurança da Informação estabeleceu princípios e objetivos para a administração pública federal e serviu de base para a Estratégia Nacional de Segurança Cibernética (e-Ciber). A E-Ciber busca preencher lacunas normativas e gerenciais fragmentadas, estabelecendo ações para atingir a visão de tornar o Brasil um país de excelência em segurança cibernética. A Estratégia recomenda a harmonização do marco legal, a ampliação da cooperação internacional, o fortalecimento da proteção de infraestruturas críticas (mencionando normativos para o setor financeiro), e o fomento à P&D e à adoção de padrões globais. A gestão da segurança cibernética envolve múltiplos atores e requer coordenação política efetiva, incluindo setor privado e sociedade. A comunicação e o compartilhamento de informações sobre riscos e incidentes cibernéticos entre os Centros de Tratamento e Resposta a Incidentes de Segurança Cibernética (CSIRTs) são essenciais para uma abordagem coordenada.
A Educação também é um eixo temático importante na transformação digital, visando preparar os estudantes para o mercado de trabalho e melhorar a gestão escolar. O uso da tecnologia na educação deve ser gradual para evitar efeitos adversos. A conectividade, especialmente a banda larga nas escolas, é vista como veículo para melhorar as políticas educacionais, auxiliando na gestão, formação de professores, acesso dos alunos à informação e acompanhamento pelos pais. A política vigente, baseada no ProInfo de 1997, precisa ser atualizada. A formação profissional técnica tem crescido, incluindo cursos na área de informação e comunicação e oferta à distância. Os Recursos Educacionais Abertos (REA), que vão além de conteúdo gratuito ao permitir adaptação e criação local, são incentivados por declarações internacionais e pelo Plano Nacional de Educação, fomentando novas práticas educativas impulsionadas pela cultura digital. Tendências como Educação Aberta e MOOCs, o desenvolvimento de habilidades do mundo real e a personalização do aprendizado com análise de dados são destacadas. As ações estratégicas incluem priorizar o pensamento computacional, formular uma nova política de tecnologia educacional, ampliar a conectividade nas escolas, aprimorar a formação de professores, fomentar a produção e disseminação de conteúdos digitais (especialmente REA), e revisar políticas tradicionais como o PNLD para a transição digital.
A Dimensão Internacional busca fortalecer a liderança brasileira em fóruns globais, estimular a competitividade de empresas brasileiras no exterior e promover a integração regional. Há oportunidades para ampliar a presença de empresas brasileiras internacionalmente, incluindo startups e a participação em plataformas digitais globais. Manter a liderança brasileira na governança da Internet, baseada no multissetorialismo, é crucial. Desafios como a assimetria de representatividade em fóruns internacionais e a gestão de temas críticos como segurança cibernética e tributação são mencionados. No âmbito regional, o Brasil tem atuado em iniciativas como o Grupo Agenda Digital do MERCOSUL e a Agenda Digital para a América Latina e Caribe (eLAC 2020). A proposta de um Mercado Único Digital na América Latina, inspirada na União Europeia, é vista como uma oportunidade econômica para o país. É estratégico que o Brasil participe ativamente nas negociações e coordenação da Economia Digital em âmbito internacional. A internacionalização das empresas brasileiras no comércio eletrônico ainda é limitada em comparação com o seu potencial, sendo necessário promover a integração de processos de cobrança e logística para exportação via e-commerce e apoiar mecanismos de segurança online e meios de pagamento digitais.
No que tange à transformação digital da economia, a Internet das Coisas (IoT) é um fator chave, conectando pessoas, dispositivos, sensores e máquinas. A vasta quantidade de dados gerados ("digital exhaust") serve como matéria-prima cujo valor é maximizado com a reutilização. O Plano Nacional de IoT busca garantir um impacto positivo na economia e na vida das pessoas, atuando em diversas dimensões e propondo iniciativas. A intersecção entre indústria e serviços aumenta, com a automação de tarefas devido às tecnologias digitais. Desafios incluem a redução de custos de dispositivos, análise de dados e atração de investimentos, além de questões de privacidade e segurança de dados pessoais. Plataformas digitais também remodelam diversos setores, desde serviços de busca até mídias sociais, comércio eletrônico e economia criativa. O "efeito rede" pode criar barreiras de entrada, e a concentração de poder econômico em poucas bases de acesso é uma preocupação. No comércio eletrônico, programas como o Exporta Fácil apoiam pequenas empresas na exportação. Na economia criativa, o impacto das plataformas de streaming exige discussão sobre transparência e remuneração de direitos autorais em nível internacional.
A transformação digital do governo visa redesenhar estruturas e processos estatais para torná-los mais ágeis e alinhados às necessidades da sociedade, incrementando a relação com cidadãos e tornando as instituições públicas mais transparentes e com melhores canais digitais de interação. Apesar do aumento no acesso à Internet, a proporção de usuários de serviços de governo online permanece constante, indicando a necessidade de expandir e aprimorar a oferta desses serviços para que os cidadãos possam resolver demandas sem deslocamento físico. A integração e convergência de serviços digitais podem centralizá-los, reduzindo a fragmentação e aumentando o conforto e agilidade para o cidadão. É fundamental que o governo veja a Internet não apenas como ferramenta de transparência, mas como um meio para prestar melhores serviços. A e-Saúde é um exemplo de como a tecnologia está mudando a organização e oferta de serviços de saúde, exigindo integração e interoperabilidade de sistemas para melhorar a qualidade da atenção. Indicadores como o Índice de Dados Abertos (Global Open Data Index), onde o Brasil foi classificado como o 8º país mais aberto em dados governamentais em 2017, e os da Pesquisa TIC Domicílios e TIC Governo Eletrônico são utilizados para acompanhar a evolução. A Estratégia de Governança Digital do Ministério do Planejamento (mencionada em relação a indicadores) já previa indicadores específicos para o governo digital.
A Estratégia Nacional de Governo Digital (ENGD) representa um marco na transformação digital do setor público brasileiro. Prevista em lei (Lei nº 14.129/2021) e instituída por decreto (Decreto nº 12.069/2024), a ENGD é coordenada pelo Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos e foi construída de forma colaborativa. Seu objetivo é modernizar a gestão pública, aumentar a eficiência dos serviços e fortalecer a participação cidadã. O decreto detalha ações e diretrizes para o período de 2024 a 2027, incluindo 10 objetivos declarados.
No âmbito da Governança de Dados no setor público, que é um tema chave e de vanguarda na transformação digital, o Brasil está acima da média da OCDE em termos de disponibilidade e acessibilidade de dados, mas enfrenta desafios no pilar de apoio governamental à reutilização de dados. Dados são vistos como ativos, e a governança de dados envolve marco legal, regras de compromisso para coleta/uso/descarte, e arranjos institucionais para garantir qualidade, privacidade e segurança ao longo do ciclo de vida dos dados. A América Latina, em geral, ainda tem poucos avanços normativos sobre governança ou estratégias de dados, com Brasil e Uruguai sendo exceções notáveis na região.
Apesar de alguns desafios, a transformação digital no setor público brasileiro trilha um caminho promissor, com crescentes investimentos e incentivos à modernização tecnológica. As iniciativas focam em melhorar a prestação de serviços para o cidadão. Um caso de sucesso citado é o do Município do Rio de Janeiro, que modernizou o pagamento de taxas via PIX, reduzindo o tempo de processamento de 48 horas para poucos minutos, aumentando a arrecadação para o órgão público e reduzindo o tempo para a população.
Referências
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