Compliance e Integridade nas Compras Governamentais

Renor Ribeiro, Ph.D

Como citar esse artigo: 

RIBEIRO, Renor Antonio Antunes. Compliance e Integridade nas Compras Governamentais. Cegesp (2023); Revisado em: 2025.

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Introdução

As contratações públicas são um pilar fundamental para a execução de políticas públicas e a prestação de serviços essenciais à sociedade. Devido ao vultoso volume de recursos envolvidos e à complexidade das operações, o setor está particularmente exposto a riscos de corrupção e ineficiência, um problema clássico do "principal-agente". A promoção da integridade e a implementação de programas de compliance tornam-se, portanto, essenciais para mitigar esses riscos e garantir que as contratações atendam ao interesse público.

1. Os Principais Riscos Associados às Compras Públicas

O dilema do "principal-agente" no setor público ocorre quando agentes públicos, embora contratados para servir ao interesse da sociedade (o principal), podem agir de acordo com seus próprios interesses ou os de grupos a que pertencem, o que leva a práticas de corrupção e ineficiências. No contexto das contratações públicas, este problema é agravado pelo alto volume de recursos, a importância estratégica dos contratos e, muitas vezes, a complexidade das operações, bem como pela baixa capacitação das equipes e sobrecarga de trabalho.

Os riscos clássicos de integridade e corrupção nas compras governamentais incluem:

Conflitos de Interesses Não Identificados e Mal Gerenciados: Isso pode levar a decisões tendenciosas ou parciais, favorecendo interesses privados em detrimento do interesse público e minando a confiança dos fornecedores honestos. Exemplos práticos incluem relacionamentos de parentesco ou vínculo comercial entre sócios/administradores de empresas licitantes e servidores públicos envolvidos no processo. Tais conflitos podem resultar no direcionamento de licitações e favorecimentos indevidos, como pagamentos antecipados ou por serviços não prestados. A Lei nº 14.133/2021 proíbe explicitamente algumas situações que configuram conflito de interesses no âmbito das contratações.

Fraude e Conluio: Isso inclui frustrar ou fraudar o caráter competitivo do processo licitatório, impedir ou perturbar a realização de atos da licitação, afastar licitantes por fraude ou vantagem, e manipular o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos. A OCDE destaca que o conluio entre concorrentes em contratações públicas, buscando aumentar preços ou diminuir a qualidade, custa bilhões aos governos.

Superfaturamento: Obtenção de vantagem ou benefício indevido de forma fraudulenta, como modificações ou prorrogações de contratos sem autorização legal. Também se relaciona à percepção de vantagem econômica para facilitar aquisição ou contratação de serviços por preço superior ao valor de mercado.

Inadequação de Códigos de Conduta e Falta de Capacitação: Quando os padrões de conduta não abrangem as especificidades das contratações públicas, ou os agentes não possuem capacitação adequada em ética e integridade, o ambiente se torna propício à fraude e corrupção, resultando em atos de improbidade administrativa e danos à imagem da organização.

2. Como o Compliance Atua para Mitigar Riscos

O compliance (ou programa de integridade) é um conjunto de disciplinas para fazer cumprir normas legais, regulamentos, políticas e diretrizes internas, visando evitar, detectar e tratar desvios ou desconformidades. Ele é considerado um dos principais mecanismos para combater o problema do "principal-agente" e a corrupção nas contratações públicas.

A promoção da integridade nas contratações públicas envolve:

1. Definição de Valores Éticos e Padrões de Comportamento: Esses padrões devem ser formalizados em leis e códigos de conduta, que não apenas proíbam ações, mas também incentivem a ética e comportamentos que priorizem o interesse público sobre o privado.

2. Identificação e Gestão de Conflitos de Interesses: Os profissionais envolvidos devem ser e parecer imparciais. Isso é promovido por meio de segregação de funções (evitando que o mesmo agente atue em funções suscetíveis a riscos), background checks, e a obrigatoriedade de gestores e colaboradores informarem situações de conflito de interesses, incluindo restrições a recebimento de presentes, uso de informações privilegiadas e nepotismo.

3. Promoção de Treinamentos sobre Integridade: Capacitar os profissionais a identificar problemas éticos e reagir adequadamente, enfatizando a responsabilidade pessoal e a conscientização sobre os custos de ações antiéticas.

4. Estímulo à Adesão dos Fornecedores aos Padrões de Integridade: A Lei nº 14.133/2021 apoia essa medida, estabelecendo que programas de integridade podem ser:

  • Obrigatórios para empresas que celebram contratos de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto (valor estimado superior a R$ 200.000.000,00).
  • Um critério de desempate de propostas em licitações.
  • Um fator a ser considerado na aplicação de sanções.
  • Uma condição de reabilitação de licitante ou contratado, especialmente para infrações graves.

 

3. As Fases do Processo de Contratação Pública sob a Ótica da Integridade

O processo de contratação pública é um metaprocesso com várias fases, e a integridade deve ser observada em todas elas:

  1. Governança das Contratações Públicas:

A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela governança das contratações e deve implementar processos e estruturas para promover um ambiente íntegro e confiável. Isso inclui a gestão de riscos e a promoção da integridade, da transparência e da accountability.

 2. Planejamento da Contratação (Fase Interna):

  • Estudo Técnico Preliminar (ETP) e Termo de Referência (TR): Documentos essenciais que descrevem a necessidade, requisitos, estimativas de quantidades e valores. A integridade nesta fase implica em evitar a formulação de descritivos que restrinjam indevidamente a competitividade e em realizar estimativas de preços transparentes, sem combinação de preços.
  • Análise de Riscos: Identificar e gerenciar os riscos associados ao tema da integridade.
  • Edital: Deve prever a obrigatoriedade de programas de integridade para contratos de grande vulto e explicitar proibições relacionadas a conflitos de interesse.
  • Análise Jurídica: Assegurar a conformidade legal da contratação.

3. Seleção do Fornecedor (Fase Externa/Licitação):

  • Divulgação do Edital e Apresentação de Propostas: A transparência é crucial. A OCDE sugere a não divulgação de participantes pré-qualificados até a publicação do resultado final para evitar a formação de cartéis. É proibido o recebimento de informações privilegiadas ou a combinação de preços e a restrição da competição.
  • Julgamento: Critérios de julgamento devem ser claros e objetivos. O programa de integridade do licitante pode ser um critério de desempate. O desempenho contratual prévio dos licitantes também deve ser considerado.
  • Habilitação: Verificar a qualificação jurídica, técnica, fiscal, social e trabalhista, e econômico-financeira do licitante. Impedimentos de participação relacionados a conflitos de interesse ou sanções devem ser rigorosamente observados.
  • Recurso e Encerramento: Garantir a possibilidade de questionamento das decisões.

 4. Gestão do Contrato:

  • Execução do Contrato: Fiscalização técnica e administrativa contínua. É fundamental monitorar a adesão aos padrões de integridade e conduta. Vedada a subcontratação de pessoas com vínculos de conflito de interesse com a Administração.
  • Alteração do Contrato: Reequilíbrio econômico-financeiro deve seguir regras claras para evitar manipulação ou fraude.
  • Infrações e Sanções Administrativas: Em caso de descumprimento, as sanções devem ser aplicadas, considerando a existência ou o aperfeiçoamento de programa de integridade como atenuante. A implantação de um programa de integridade pode ser uma condição para a reabilitação de licitantes ou contratados que cometeram infrações graves.

4. Boas Práticas e Mecanismos de Controle

A promoção de um ambiente negocial íntegro e confiável é uma diretriz da governança nas contratações públicas.

Segregação de Funções: Evita a concentração de poder e reduz a possibilidade de ocultação de erros e ocorrência de fraudes.

Treinamento Contínuo: Capacitar agentes públicos e até mesmo fornecedores para identificar e lidar com problemas éticos. O treinamento proativo não apenas ensina o que deve ser evitado, mas também conscientiza sobre os custos de ações antiéticas para a organização e os cidadãos.

Canais de Denúncia: Abertos e amplamente divulgados, com mecanismos de proteção aos denunciantes de boa-fé.

Controles Financeiros: Registros contábeis precisos e controles internos que garantam a confiabilidade dos relatórios financeiros.

Auditoria Interna: Atua como um mecanismo essencial para adicionar valor à função de contratações, identificando fragilidades e desvios, e avaliando a legitimidade das ações.

5. Transparência e Accountability

A transparência é o melhor antídoto contra a corrupção e um dos princípios da Lei nº 14.133/2021.

Divulgação de Informações: A OCDE recomenda a ampla e irrestrita divulgação de Planos Anuais de Contratações.

E-government (Governo Eletrônico): A utilização de sistemas eletrônicos e tecnologias da informação aprimora o controle público e o atendimento ao cidadão, promovendo a transparência administrativa. A Lei nº 14.133/2021 incentiva a ampliação e fortalecimento das contratações via sistemas eletrônicos.

Accountability: Promoção da prestação de contas dos agentes públicos. As auditorias de conformidade promovem a accountability ao reportar desvios e violações a normas, permitindo que ações corretivas sejam tomadas e os responsáveis sejam responsabilizados.

6. O Papel da Auditoria e da Certificação

Os Tribunais de Contas, por atribuição constitucional, fiscalizam as contratações públicas e são agentes importantes no combate à fraude nas licitações. O controle das contratações públicas é legalmente reconhecido como uma terceira linha de defesa na gestão de riscos. As normas internacionais de auditoria (NBASP) orientam a atuação dos tribunais para aprimoramento da gestão, aumento da transparência e fortalecimento da accountability.

As auditorias podem ser de diferentes tipos, como financeira, de conformidade ou operacional, dependendo do objetivo. A auditoria de conformidade é a mais comum e essencial para promover a boa governança no setor público ao considerar o risco de fraude relacionado à conformidade.

A certificação ISO 37001 (Sistema de Gestão Antissuborno) surge como um instrumento confiável para a demonstração da efetividade dos Programas de Integridade. Embora o escopo da ISO 37001 seja especificamente antissuborno, uma organização pode optar por ampliar seu sistema de gestão para incluir outras atividades relacionadas a práticas corruptas, fraudes e cartéis.

A certificação ISO 37001, emitida por Organismos de Avaliação da Conformidade (OACs) acreditados pelo INMETRO, garante que o sistema de gestão antissuborno da organização foi avaliado em sua estruturação, implementação e efetividade. Isso confere mais tranquilidade e transparência a todos os atores, pois um certificado só é emitido se o sistema de gestão estiver estruturado, implementado e efetivo, assegurando que 100% das empresas certificadas serão avaliadas periodicamente. Isso ajuda a superar a dificuldade de avaliação por profissionais não especialistas e a superficialidade de metodologias baseadas apenas em checklists.

7. Exemplos Práticos no Setor Público Brasileiro

Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos): Este marco legal conferiu especial importância ao compliance, prevendo-o como obrigatório para contratações de grande vulto (acima de R$ 200 milhões), como critério de desempate na licitação, fator atenuante de sanção e condição de reabilitação. A lei adota uma lógica de incentivo ao compliance como regra e obrigatoriedade como exceção, focando em contratos de maior valor e risco.

Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016): Trouxe avanços significativos em governança e compliance para empresas públicas e sociedades de economia mista, tornando obrigatória a elaboração de um Código de Conduta e Integridade, estabelecendo requisitos para nomeação de administradores e criando mecanismos de controle e transparência. O objetivo foi profissionalizar a gestão e combater a corrupção.

Leis Estaduais e Municipais: Diversos entes federativos instituíram a obrigatoriedade de programas de integridade por seus contratados antes mesmo da Lei nº 14.133/2021.

  • O Estado do Rio de Janeiro (Lei nº 7.753/2017) foi pioneiro, exigindo o programa para contratos de compras e serviços acima de R$ 650.000,00 e obras/serviços de engenharia acima de R$ 1.500.000,00, com prazo superior a 180 dias. A comprovação do compliance é uma obrigação contratual com prazo definido.
  • O Distrito Federal (Lei nº 6.112/2018) exige compliance para contratos acima de R$ 5.000.000,00 e prazo superior a 180 dias. A lei do DF foi atualizada para exigir o programa a partir da celebração do contrato.
  • Há disparidades nos parâmetros (valores, prazos) e critérios de avaliação entre as normas estaduais e municipais, gerando potencial insegurança jurídica para o mercado.

Atuação de Órgãos de Controle:

  • A OCDE e o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) colaboram no combate a cartéis em compras públicas no Brasil, recomendando a redução de contratações diretas, o aumento de sistemas eletrônicos e a valorização de licitantes com compromisso de integridade.
  • A CGU (Controladoria-Geral da União) e a AGU (Advocacia-Geral da União) têm incluído a obtenção de certificação ISO 37001 em acordos de leniência.
  • O Tribunal de Contas da União (TCU) referencia a ISO 37001 como uma garantia de que uma entidade independente avaliou e aprovou o sistema. Há projetos de lei, como o PL nº 418/2020 na Câmara dos Deputados, que propõem a obrigatoriedade da certificação ISO 37001 para contratos federais de grande vulto.

8. Conclusão

A promoção da integridade e a implementação do compliance nas contratações públicas são cruciais para combater a corrupção e a ineficiência, assegurando que os recursos públicos sejam utilizados em prol do interesse da sociedade. A legislação brasileira, especialmente a Lei nº 14.133/2021, a Lei Anticorrupção e a Lei das Estatais, avançou significativamente ao prever mecanismos de incentivo e obrigatoriedade para programas de integridade.

Apesar dos desafios relacionados à harmonização de critérios entre os diferentes entes federativos e à necessidade de capacitação de agentes públicos para a fiscalização, a adoção de padrões como a ISO 37001 e o fortalecimento da atuação dos órgãos de controle e da transparência (inclusive via e-government) são passos fundamentais. Tais medidas visam criar um ambiente de maior previsibilidade, confiança e segurança jurídica no mercado de contratação pública, promovendo relações íntegras e confiáveis.

 

9. Perguntas de Fixação

1. Qual é o "problema do principal-agente" no contexto das contratações públicas e como os programas de integridade buscam combatê-lo?

2. Quais são os quatro principais pilares da promoção da integridade nas contratações públicas, conforme as fontes?

3. De que forma a Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações) incentiva e torna obrigatória a adoção de programas de integridade?

4. Quais são os principais riscos de fraude e conluio que podem ocorrer nas fases de planejamento e seleção de fornecedores em uma licitação?

5. Explique o papel da auditoria e da certificação ISO 37001 na garantia da efetividade de um programa de integridade, e como isso pode beneficiar a Administração Pública.

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10. Referências

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