Estudos Técnicos Preliminares (ETP): elaboração e importância - Parte 1

 

1. Definição de ETP e sua Relevância na Lei 14.133/2021

O Estudo Técnico Preliminar (ETP) é um documento estratégico elaborado no início do planejamento de contratações públicas, cujo objetivo primordial é identificar o problema a ser resolvido e apontar a melhor solução entre as possíveis. Ele é um documento constitutivo da primeira etapa do planejamento de uma contratação, caracterizando o interesse público envolvido e a sua melhor solução. O ETP serve de base para o anteprojeto, termo de referência ou projeto básico, caso se conclua pela viabilidade da contratação.

A relevância do ETP foi significativamente elevada com a edição da Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos). Esta lei operou a centralização normativa dos conceitos, da documentação e das etapas do planejamento nas contratações públicas, e consagrou o planejamento como princípio básico (art. 5º). Com isso, o ETP teve sua importância evidenciada, tornando-se um instrumento obrigatório em qualquer contratação pública em âmbito nacional, exceto em casos específicos de dispensa ou facultatividade previstos em lei e regulamentos.

Historicamente, o planejamento era frequentemente negligenciado em detrimento da fase de seleção do fornecedor, o que levava a contratações sem lastro em uma necessidade real ou soluções bem definidas. A Nova Lei de Licitações busca reverter essa lógica, promovendo um planejamento mais robusto e eficaz, e o ETP é a peça central desse novo paradigma.

2. Papel do ETP no Planejamento das Contratações

O ETP desempenha um papel central na fase preparatória do processo licitatório, que é caracterizada pelo planejamento. Ele é o primeiro documento oficial da fase interna (ou fase de planejamento), que se desenvolve no âmbito da Administração Pública sem exteriorização perante terceiros.

Sua finalidade é delimitar a melhor solução para a necessidade pública identificada pela Administração. Ele consolida as informações e conclusões obtidas na fase de planejamento, servindo como esboço para a elaboração do anteprojeto, termo de referência (TR) ou projeto básico (PB). O TR ou PB, por sua vez, representam o planejamento definitivo da contratação.

A importância do ETP reside em:

• Permitir a avaliação da viabilidade técnica e econômica da contratação ou das contratações necessárias para compor a solução, inclusive para os casos de contratação direta.

• Antecipar problemas e prever oportunidades, orientando a tomada de decisão.

• Garantir que o processo licitatório seja iniciado com base em uma análise técnica bem estruturada.

• Proporcionar uma visão abrangente e fundamentada da demanda.

• Em alguns casos, o ETP pode até mesmo levar à conclusão de que nenhuma contratação é viável ou necessária, indicando outras abordagens.

É fundamental compreender que o ETP não se confunde com o Termo de Referência. Enquanto o ETP verifica e analisa a viabilidade da contratação na primeira fase de planejamento, o TR é um instrumento posterior que promove a caracterização detalhada do objeto a ser contratado, aprofundando as especificações da solução escolhida no ETP. O ETP é "essencialmente exploratório", enquanto o TR detalha a especificação do objeto.

3. Base Legal e Normativos Complementares

A principal base legal para o Estudo Técnico Preliminar na Nova Lei de Licitações é o art. 18 da Lei nº 14.133/2021, que descreve a fase preparatória do processo licitatório.

Lei nº 14.133/2021:

    ◦ Art. 5º: Acrescenta o princípio do planejamento entre os princípios fundamentais das licitações e contratos.

    ◦ Art. 6º, inciso XX: Define ETP como o documento constitutivo da primeira etapa do planejamento que caracteriza o interesse público e a melhor solução, dando base ao anteprojeto, TR ou PB.

    ◦ Art. 18, inciso I, e § 1º: A fase preparatória do processo licitatório é caracterizada pelo planejamento e inclui a descrição da necessidade da contratação fundamentada em estudo técnico preliminar. O § 1º detalha os elementos que o ETP deverá conter.

    ◦ Art. 18, § 2º: Determina que os elementos previstos nos incisos I (descrição da necessidade), IV (estimativas de quantidades), VI (estimativa do valor), VIII (justificativas para parcelamento ou não) e XIII (posicionamento conclusivo) do § 1º devem constar obrigatoriamente do ETP, sendo necessária a justificativa para a ausência dos demais.

    ◦ Art. 72, inciso I: Estabelece que o processo de contratação direta (inexigibilidade e dispensa de licitação) deve ser instruído com documentos como o ETP, se for o caso.

É importante notar que, embora o usuário tenha mencionado "art. 24 da Lei 14.133/2021", os documentos fornecidos indicam que o Art. 24 é da Instrução Normativa nº 05/2017/SEGES. Esta IN, embora editada à luz da Lei nº 8.666/93, foi recepcionada pela União no novo regime licitatório. O Art. 24 da IN 05/2017/SEGES detalha que a equipe de Planejamento da Contratação deve realizar os Estudos Preliminares, e seu §1º especifica o conteúdo que deve constar do documento que materializa esses estudos.

Normativos Complementares:

IN – Seges/ME nº 58/2022: Dispõe sobre a elaboração do ETP para a Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional. É o normativo que regulamenta a obrigatoriedade de confecção do ETP no Sistema ETP Digital no Portal de Compras do Governo Federal. Também estabelece as hipóteses de dispensa e facultatividade do ETP.

IN – SGD/ME nº 94/2022: Foca nas contratações de Soluções de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC), detalhando o conteúdo do ETP para esses casos.

Decreto nº 10.947/2022: Regulamenta o Plano de Contratações Anual (PCA) e institui o Sistema de Planejamento e Gerenciamento de Contratações (PGC), prevendo que o processo de contratação será acompanhado de ETP.

IN – Seges/ME nº 73/2022: Determina que o critério de julgamento de menor preço ou maior desconto será adotado quando o ETP demonstrar que a avaliação da qualidade técnica não é relevante.

IN – Seges/ME nº 96/2022: Define elementos adicionais para o ETP no critério de julgamento por maior retorno econômico, como potencial economia, risco envolvido, adequação do modelo de remuneração e prazo de vigência.

A regra geral é a obrigatoriedade do ETP em todos os processos de contratação. No entanto, ele pode ser dispensado em situações específicas, como licitação frustrada (Art. 75, III, Lei 14.133/2021) ou prorrogação de contrato de natureza continuada. É facultado em casos de dispensa por valor (Art. 75, I e II), guerra/grave perturbação da ordem (Art. 75, VII), emergência/calamidade pública (Art. 75, VIII), e contratação de remanescente de obra/serviço/fornecimento devido a rescisão contratual. A dispensa deve ser devidamente justificada.

4. Objetivos do ETP: Necessidade, Viabilidade e Alternativas

Os objetivos do ETP giram em torno de três pilares fundamentais:

Compreensão e descrição clara da Necessidade: O ETP deve evidenciar o problema a ser resolvido sob a perspectiva do interesse público. A "necessidade" é o problema que se quer resolver ou a situação indesejada que se quer modificar. É crucial distinguir a necessidade da "solução". A confusão entre os dois conceitos é comum e pode representar um sério obstáculo para um estudo apropriado. A solução deve adequar-se à necessidade, e não o contrário.

Avaliação da Viabilidade Técnica e Econômica: O ETP possibilita a avaliação da viabilidade da contratação, considerando os aspectos técnicos, socioeconômicos e ambientais. Ele permite à equipe de planejamento antecipar problemas e prever oportunidades, orientando a tomada de decisão.

Análise das Alternativas e Escolha da Solução mais Adequada: O documento deve apresentar um levantamento de mercado que consiste na análise das alternativas possíveis, e a justificativa técnica e econômica da escolha do tipo de solução a contratar. O objetivo é identificar a solução mais adequada, entre as possíveis, para atender à necessidade da Administração.

O estudo da necessidade, que é a essência dos estudos preliminares, não tem como função identificar a "melhor solução", pois esta não existe de forma absoluta. Existem boas soluções, que são alternativas potenciais a serem comparadas e, por fim, selecionadas pelo ator decisório, que estará bem-informado. Para um estudo aprofundado da necessidade, sugere-se:

1. Levantamento dos atores interessados no problema.

2. Definição da necessidade (desejo + dilema), que deve ser um objetivo abstrato.

3. Levantamento de critérios que definem a necessidade (objetivos mensuráveis).

4. Estudo dos fatores que influenciam ou são influenciados pelos critérios (análise causal do ambiente).

5. Levantamento de soluções possíveis sem julgamento prévio.

Exemplo da "Necessidade x Solução" (Analogia do Tênis de Corrida): Imagine a necessidade de Dona Maria de "fazer caminhadas regulares e uma corrida leve de vez em quando" para "cuidar da saúde" e "perder peso", e a necessidade de João, um atleta profissional, de um tênis para uma maratona. Embora ambos busquem tênis para atividades físicas que envolvem corrida, suas necessidades e expectativas de resultados são muito diferentes. Maria poderia comprar um tênis de última geração, caríssimo, que seria subutilizado para suas caminhadas leves, enquanto João, sem um tênis apropriado, poderia se machucar.

No contexto público, não é incomum, por exemplo, que a Administração se empolgue com inovações no mercado e crie justificativas para adotar uma solução específica, sem uma análise racional e profunda do problema, levando a alternativas subutilizadas ou inadequadas. O ETP bem-feito evita esses vieses decisórios, garantindo que a solução escolhida seja realmente a que melhor atende à necessidade.

6. Estrutura Básica do ETP: Elementos Essenciais

De acordo com o art. 18, § 1º, da Lei nº 14.133/2021, o ETP deverá conter os seguintes elementos:

1. Descrição da necessidade da contratação: Apresentar o problema a ser resolvido sob a perspectiva do interesse público.

2. Demonstração da previsão da contratação no plano de contratações anual (PCA): Indicar o alinhamento com o planejamento da Administração.

3. Requisitos da contratação: Especificação clara dos requisitos essenciais para a execução do objeto contratado.

4. Estimativas das quantidades para a contratação: Acompanhadas das memórias de cálculo e dos documentos que lhes dão suporte, considerando interdependências com outras contratações para possibilitar economia de escala.

5. Levantamento de mercado: Análise das alternativas possíveis e justificativa técnica e econômica da escolha do tipo de solução a contratar.

6. Estimativa do valor da contratação: Acompanhada dos preços unitários referenciais, memórias de cálculo e documentos de suporte. Pode ser sigilosa até a conclusão da licitação.

7. Descrição da solução como um todo: Incluindo exigências relacionadas à manutenção e assistência técnica, quando for o caso.

8. Justificativas para o parcelamento ou não da contratação: Racionalizar decisões sobre a estrutura do contrato.

9. Demonstrativo dos resultados pretendidos: Em termos de economicidade e melhor aproveitamento dos recursos humanos, materiais e financeiros disponíveis.

10. Providências a serem adotadas pela Administração: Previamente à celebração do contrato, incluindo a capacitação de servidores para fiscalização e gestão contratual.

11. Contratações correlatas e/ou interdependentes: Considerando a interação com outras contratações.

12. Descrição de possíveis impactos ambientais: E respectivas medidas mitigadoras, incluindo requisitos de baixo consumo de energia e outros recursos, bem como logística reversa para desfazimento e reciclagem.

13. Posicionamento conclusivo sobre a adequação da contratação: Garantindo o atendimento da necessidade a que se destina.

Os elementos nos incisos I, IV, VI, VIII e XIII são obrigatórios, sendo necessária justificativa para a ausência dos demais. A complexidade na abordagem de cada elemento dependerá das características do caso concreto.

7. Responsáveis pela Elaboração

O ETP deverá ser elaborado conjuntamente por representantes da área técnica e da área requisitante ou, quando houver, pela equipe de planejamento da contratação. Essa colaboração visa garantir uma abordagem abrangente, considerando diferentes perspectivas sobre a demanda e promovendo decisões mais alinhadas com o interesse público.

A equipe de planejamento da contratação é um conjunto de servidores que reúnem as competências necessárias para a completa execução das etapas de planejamento, incluindo conhecimentos técnicos do objeto, licitações e contratos. Em contextos de Tecnologia da Informação (TI), o ETP será aprovado e assinado pelos Integrantes Técnico e Requisitante da Equipe de Planejamento da Contratação e pela autoridade máxima da Área de TIC.

Na Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional do Poder Executivo, o ETP deve ser confeccionado no Sistema ETP Digital, disponível no Portal de Compras do Governo Federal.

8. Estudo de Caso Prático de Falha por Ausência de ETP

A ausência ou a elaboração inadequada do ETP pode levar a falhas graves no processo de contratação, com sérias consequências para a Administração Pública. O Tribunal de Contas da União (TCU) tem consistentemente alertado sobre essas impropriedades.

Um exemplo clássico de falha é a elaboração açodada, pro forma e a posteriori do ETP, apenas para cumprir o rito processual, subvertendo a sequência lógica do planejamento. Isso significa que a solução já foi escolhida previamente, e o ETP é "forjado" para justificar essa escolha, em vez de explorá-la e compará-la com outras alternativas.

O Acórdão 122/2020-TCU-Plenário é um precedente claro dessa irregularidade, onde o Tribunal identificou a elaboração pro forma e a posteriori dos artefatos essenciais ao planejamento da contratação (ETP e Projeto Básico). Essa prática desrespeita o princípio fundamental do planejamento e do controle, insculpido no Decreto-Lei nº 200/1967. Quando isso ocorre, o ETP se torna inútil, resultando em desperdício de esforços e na perda da oportunidade de explorar soluções mais eficientes, aumentando o risco de contratações inadequadas e o desperdício de recursos públicos.

Exemplo prático de falha observado na prática: Uma pesquisa empírica em diversos ETPs para serviços de copeiragem em uma autarquia federal, espalhados pelo país, revelou problemas recorrentes:

Descrição da necessidade equivocada: Muitos documentos mencionavam a "necessidade" de contratar copeiragem e outros serviços agregados, como limpeza e jardinagem, com fornecimento de mão-de-obra e material. No entanto, não havia menção à demanda real, como a necessidade de fornecer bebidas quentes aos usuários das instalações, nem porque isso seria relevante para o interesse público.

Justificativas genéricas: As justificativas frequentemente se limitavam a mencionar a extinção de cargos, o enquadramento em pressupostos de terceirização ou a natureza continuada dos serviços, sem um vínculo claro com a necessidade pública a ser atendida.

Foco na solução pré-determinada: O estudo de soluções possíveis limitava-se a informar pesquisas de editais e contratos similares, afirmando que a "solução de contratação que mais se encaixa à atual necessidade" era a contratação de empresa especializada, muitas vezes baseada na frequência de um modelo específico em outros contratos. Não havia uma análise fundamentada de múltiplas soluções possíveis.

Confusão com o Termo de Referência: Os ETPs consultados pareciam muito com Termos de Referência, enfatizando a descrição detalhada da solução a ser contratada, em vez de aprofundar o conhecimento sobre a necessidade e o estudo efetivo de alternativas.

Essas falhas demonstram que, embora a lei exija o ETP, a prática muitas vezes não atinge seu potencial, gerando custos administrativos significativos sem garantir bons resultados do investimento. Um ETP bem elaborado, ao contrário, é um trabalho criativo e prospectivo, que busca soluções e as compara, visando sempre resolver o problema real da Administração.

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Referências Bibliográficas

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BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 122/2020-Plenário. Relator: Ministro Raimundo Carreiro. Sessão de 29/01/2020. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br. Acesso em: [data da consulta].

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