
Evolução histórica das licitações no Brasil

A evolução histórica das licitações no Brasil é marcada por uma trajetória que busca aprimorar a gestão pública, aumentar a transparência e combater a corrupção, adaptando-se a diferentes contextos políticos e sociais. Compreende-se a licitação como um procedimento administrativo essencial para que o poder público adquira bens e serviços, selecionando a proposta mais conveniente ao interesse estatal e garantindo igualdade de condições a todos os interessados.
Abaixo, os marcos principais dessa evolução:
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Brasil Império (1822-1889)
- A primeira norma com finalidade para licitações e contratos no Brasil foi o Decreto nº 2.926, de 14 de maio de 1862, durante a vigência da 1ª Constituição Federal de 1824.
- Regulamentava as arrematações de serviços do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas.
- Suas características incluíam a orientação sobre prazos para propostas, a exposição de amostras de bens e serviços pelo governo, e o fornecimento de plantas para obras. O processo era semelhante ao que hoje é o Pregão Presencial, com anúncios públicos, sorteio e escolha da melhor proposta com fiador.
- Essa norma é considerada um marco para o processo licitatório, impulsionando uma gestão pública mais eficiente e beneficiando a sociedade com maior participação de empresas. Contudo, o poder decisório permanecia concentrado na monarquia.
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República Velha, Era Vargas e República Nova (1889-1964)
- Decreto nº 4.536/1922: Aprovado no período republicano, instituiu o Código de Contabilidade da União e estabeleceu condições para empenho de despesa, assinatura de contrato e realização de concorrência pública ou administrativa. Cerca de 20 artigos da lei tratavam de licitações. Assegurou transparência, mas o patrimonialismo e favorecimento a interesses pessoais ainda eram presentes.
- Era Vargas (anos 1930): Houve uma ousada experiência de centralização das compras, vista como uma das iniciativas mais importantes da reforma administrativa da época, com a criação de uma Comissão Central de Compras (CCC). O objetivo era centralizar e padronizar as compras, criando um grande catálogo de produtos consumidos pela administração pública. Essa iniciativa, embora tecnicamente embasada por experiências internacionais, enfrentou obstáculos técnicos (dificuldade em padronizar o grande número de itens) e foi abandonada com a mudança do governo em 1945, sendo considerada um retrocesso provocado pelo novo arranjo democrático.
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Governos Militares (1964-1985)
- Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967: Instituiu as modalidades de licitação (concorrência, tomada de preços e convite) e descreveu princípios a serem seguidos pela administração federal: planejamento, coordenação, descentralização, delegação de competência e controle.
- Previa registros cadastrais e a publicação de editais na imprensa oficial. Exigia-se, na fase de habilitação, documentos de capacidade técnica, idoneidade financeira e personalidade jurídica.
- Em 1968, a Lei nº 5.456/1968 estendeu a aplicação do Decreto-Lei nº 200/1967 aos Estados e Municípios. Este Decreto-Lei é considerado um esboço para a futura Lei nº 8.666/1993.
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Redemocratização (1986-1988) e Pós-Constituição Federal de 1988
- Decreto-Lei nº 2.300/1986: Sancionado no governo Sarney, foi o primeiro estatuto a sistematizar regras e procedimentos de compras e contratações no Brasil. Abordava a legislação privativa da União sobre normas gerais de licitação, permitindo a Estados e Municípios legislar sobre as demais, adaptando-se às suas realidades. Apesar de ser tecnicamente bem elaborado e servir de base para a futura Lei nº 8.666, teve vida curta devido ao turbilhão político da época.
- Constituição Federal de 1988: Pela primeira vez, a licitação e os contratos foram mencionados em uma Constituição Federal. O Art. 37, inciso XXI, estabeleceu a obrigatoriedade da licitação para obras, serviços, compras e alienações, assegurando a igualdade de condições aos concorrentes e pautando a administração pública nos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
- Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993 (Antiga Lei de Licitações): Foi promulgada em um contexto de forte atenção pública ao problema da corrupção e direcionamento de obras de engenharia, logo após o impeachment do Presidente Fernando Collor de Mello. Buscava ser um instrumento firme contra a corrupção. Era mais rigorosa e extensa que o Decreto-Lei nº 2.300/1986, contando com 126 artigos.
- Princípios: O Art. 3º da Lei nº 8.666/93 estabelecia princípios como isonomia, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, probidade administrativa, vinculação ao instrumento convocatório e julgamento objetivo. Posteriormente, a Lei nº 12.349/2010 incluiu a promoção do desenvolvimento nacional sustentável.
- Modalidades: Previa cinco modalidades: concorrência, tomada de preços, convite, concurso e leilão.
- Críticas: Apesar de seu objetivo, foi criticada pelo detalhismo excessivo, rigidez e burocracia, sendo que a corrupção ainda perdurava quando a lei não era cumprida com rigor.
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Inovações do Século XXI (2000 em diante)
- Lei nº 10.520/2002 (Lei do Pregão): Criada para promover maior celeridade e eficiência, introduziu a modalidade de Pregão, destinada à aquisição de bens e serviços comuns. Foi elogiada pela radical simplificação de regras, agilidade e contribuiu para a profissionalização dos servidores da área de compras (pregoeiros). Rapidamente se tornou a modalidade mais utilizada.
- Lei nº 12.462/2011 (Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC): Comentou-se que complementava a Lei nº 8.666/93, mas foi criticada por ter sido aprovada de forma superficial e por reintroduzir mecanismos que poderiam propiciar o direcionamento de licitações, favorecendo a corrupção.
- Lei nº 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação - LAI): Reforçou a transparência na administração pública, garantindo o direito do cidadão de acessar informações.
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Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos)
- Promulgação e Propósito: Sancionada em 1º de abril de 2021, essa lei substitui as Leis nº 8.666/93, nº 10.520/02 e nº 12.462/11, com o objetivo de modernizar, agilizar e trazer mais transparência e eficiência aos processos de contratação no setor público brasileiro. É vista como uma consolidação de avanços das últimas três décadas.
- Âmbito de Aplicação: Abrange a Administração Direta, Autárquica e Fundacional da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, e os poderes legislativo e judiciário quando desempenhando função administrativa. Não se aplica às Empresas Estatais, que seguem a Lei nº 13.303/16, exceto nas disposições penais.
- Princípios: Amplia o rol de princípios, incorporando os constitucionais e os da Lei nº 8.666/93, e adicionando treze novos, como planejamento, transparência, eficácia, segregação de funções, competitividade, celeridade, economicidade e desenvolvimento nacional sustentável.
- Modalidades: Simplifica e reduz o número de modalidades para cinco: Pregão, Concorrência, Concurso, Leilão e a nova modalidade Diálogo Competitivo. As modalidades convite, tomada de preços e RDC foram excluídas.
- O Diálogo Competitivo é uma inovação que permite à Administração dialogar com licitantes pré-selecionados para desenvolver soluções para necessidades complexas que não podem ser definidas com precisão ou que envolvem inovação tecnológica. Embora promova a cooperação, esta modalidade levanta preocupações concorrenciais devido ao risco de cartelização, troca de informações sensíveis e direcionamento.
- Critérios de Julgamento: Além dos critérios existentes (menor preço, melhor técnica, técnica e preço, maior lance), foram incluídos o maior desconto e o maior retorno econômico.
- Fases do Processo Licitatório: A principal mudança é a inversão das etapas de julgamento de propostas e habilitação para maior eficiência e agilidade, verificando a habilitação apenas do licitante que apresentar a proposta mais vantajosa. Há preferência pela realização de licitações em formato eletrônico.
- Planejamento: A nova lei enfatiza fortemente o planejamento, exigindo a elaboração de um Plano Anual de Contratações (PAC), preenchendo uma lacuna histórica.
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Regimes Excepcionais (Pandemia de COVID-19)
- Em resposta à pandemia de COVID-19, foram promulgadas a Lei nº 13.979/2020 e a Lei nº 14.035/2020, que estabeleceram medidas excepcionais de dispensa de licitação para a aquisição de bens e serviços de saúde. Essas leis flexibilizaram requisitos e prazos, visando a celeridade e a segurança jurídica em um cenário de urgência. Apesar de essenciais para a resposta à crise, levantaram a "luz amarela" sobre a transparência dos gastos públicos em face da simplificação das regras.
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Desafios e Perspectivas Atuais
- A Lei nº 14.133/21 coexistiu com as antigas leis até 31 de dezembro de 2023, após prorrogação pela Medida Provisória nº 1.167/2023, permitindo uma transição gradual.
- Os desafios incluem a necessidade de adaptação dos órgãos públicos e do mercado, a capacitação dos servidores e a fiscalização efetiva para garantir a correta aplicação das novas normas, especialmente em modalidades inovadoras como o Diálogo Competitivo, que exige atenção para evitar condutas anticompetitivas.
- A nova lei busca unificar o arcabouço legal, promover a digitalização dos processos e fortalecer a governança e a integridade, esperando-se que conduza a um ambiente de contratações mais ético, competitivo e voltado para o interesse público.
- ALVES, Ana Paula Gross. A evolução histórica das licitações e o atual processo de compras públicas em situação de emergência no Brasil. Revista de Gestão, Economia e Negócios (REGEN), [Brasília], v. 1, n. 2, p. 40-60, 2020. Disponível em: https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/regen/article/view/5162. Acesso em: 02 de agosto 2025.
- BRASIL. Controladoria-Geral da União; CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BRASÍLIA. Dados e linha do tempo sobre a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. [Brasília]: CGU; CEUB, . Disponível em: Repositório de Conhecimento da CGU (website). Acesso em: 02 de agosto 2025.
- CAMPOS, Flavia Thais de Genaro Machado de. Os impactos da lei 14.133/21 e a relevância para sociedade. Migalhas, [S.l.], 4 fev. 2025. Disponível em: Migalhas (website). Acesso em: 02 de agosto 2025.
- CUNHA, Thaís. A nova lei de licitações: principais mudanças e impactos. Jurídico Certo, [S.l.], 13 ago. 2024. Disponível em: Jurídico Certo (website). Acesso em: 02 de agosto 2025.
- FERNANDES, Ciro. [Enap Entrevista] História das licitações no Brasil. Entrevista concedida a Cristiano Hackert. Brasília: Enap, [s.d.]. Transcrição de vídeo. Disponível em: Canal Enap (YouTube). Acesso em: 02 de agosto 2025.
- FORTINI, Cristiana; MOTTA, Fabrício. Corrupção nas licitações e contratações públicas: sinais de alerta segundo a Transparência Internacional. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 16, n. 64, p. 93-113, abr./jun. 2016.
- LICIT MAIS BRASIL. Como surgiu as licitações no Brasil? Confira sua história! Licit Mais Brasil, [S.l.], 10 set. 2019. Disponível em: Licit Mais Brasil (website). Acesso em: 02 de agosto 2025.
- LIMA, Antonio Rhauan de Sousa Campos. A nova lei de licitações (lei nº 14.133/21): uma breve análise sobre as principais mudanças no processo de contratação no setor público brasileiro. In: CONGRESSO DE GESTÃO PÚBLICA DO RIO GRANDE DO NORTE, 16., 2023, Rio Grande do Norte. Anais.... Natal: [Congesp], 2023.
- PONTE, Luis Roberto. A origem, os fundamentos e os objetivos da lei de licitações, 8666, e da sua deformação, o RDC. [S.l.: s.n.], [s.d.].
- SANTOS, Eduarda Militz. Desafios concorrenciais da nova lei de licitações: a modalidade de diálogo competitivo. Revista de Defesa da Concorrência, Brasília, v. 10, n. 2, p. 163-176, dez. 2022.
Considerando a trajetória histórica das licitações no Brasil – marcada por diversas legislações e tentativas de aprimoramento desde o Império – e as inovações e os princípios introduzidos pela Lei nº 14.133/2021, como a nova legislação tem conseguido equilibrar a busca por maior eficiência e transparência no processo de compras públicas com os persistentes desafios da prevenção da corrupção e das condutas anticompetitivas (como a cartelização e a troca de informações sensíveis), especialmente no contexto da sua implementação e dos novos procedimentos, como o Diálogo Competitivo?
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