Responsabilidade dos gestores públicos nas contratações - Parte 1
Módulo 1: Introdução à Responsabilidade na Administração Pública e a Nova Lei de Licitações
1.1. Contexto da Gestão Pública no Brasil e a Nova Lei de Licitações
A gestão pública no Brasil é orientada por uma série de leis, normas e princípios que devem guiar a conduta dos agentes públicos em contratações, ordenação de despesas e gestão das atividades administrativas. A licitação, por exemplo, é uma exigência constitucional fixada na Carta Magna de 1988, diretamente relacionada aos princípios da indisponibilidade e da supremacia do interesse público.
A Lei nº 14.133/2021, conhecida como Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLC), surge como um marco legislativo fundamental para modernizar a gestão pública brasileira. Ela estabelece diretrizes e regras que a Administração Pública deve adotar nos processos de contratação e gestão dos contratos, incluindo deveres de gerenciamento, monitoramento e fiscalização da execução contratual. Um dos objetivos da NLLC é assegurar a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública, garantir tratamento isonômico entre os licitantes, evitar contratações com sobrepreço ou preços inexequíveis, e incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável.
1.2. Definição de Gestores Públicos na Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021)
Na Lei nº 14.133/2021, diversos agentes desempenham papéis cruciais no processo de contratação e na gestão de riscos. São considerados gestores públicos nesse contexto:
• Agente Público em Geral: Ao assumir a posição de gestor em qualquer esfera da administração, o agente público deve estar atento a leis, normas e princípios que orientam sua conduta.
• Gestor do Contrato: É o representante da administração pública responsável por gerenciar o contrato em nome do órgão ou entidade contratante. Sua atribuição principal é garantir que as obrigações contratuais sejam cumpridas, verificando as condições pactuadas, analisando e autorizando pagamentos, entre outras atividades. O gestor deve ter uma visão abrangente e atuação administrativa, com conhecimento detalhado do contrato, suas cláusulas, prazos, obrigações e responsabilidades.
◦ Perfil do Gestor: Preferencialmente, deve conhecer o assunto do contrato, ter noções de gerenciamento, não responder a processo disciplinar, não possuir punições por atos lesivos ao patrimônio público, e agir com ética, transparência e honestidade.
◦ Atribuições Principais: Planejamento da execução, acompanhamento da execução, controle financeiro, avaliação de desempenho e comunicação com fiscais, fornecedores e demais envolvidos.
• Fiscal do Contrato: É o servidor público designado para acompanhar a execução do contrato, assegurando que o contratado cumpra todas as cláusulas e obrigações. O fiscal monitora o desenvolvimento dos trabalhos, atesta o recebimento provisório e definitivo de serviços ou produtos, solicita correções e emite relatórios para subsidiar o gestor.
◦ Perfil do Fiscal: Requer um perfil mais técnico, com conhecimento sobre o objeto contratual e as peculiaridades de sua execução. Atua no acompanhamento direto, interagindo com o contratado, usuários internos e cidadãos. Integridade, honestidade, responsabilidade e busca pela eficiência são qualidades essenciais.
◦ Atribuições Principais: Acompanhamento técnico, verificação de qualidade, emissão de pareceres técnicos, registro de ocorrências e fiscalização documental.
• Agentes de Contratação: A Lei nº 14.133/2021 também se refere a "agentes de contratação" como parte dos comitês de riscos e controles.
• Alta Administração: É o corpo dos dirigentes máximos da organização, responsável pela implantação e manutenção de mecanismos, instâncias e práticas de governança, bem como pela implementação de processos e estruturas de gestão de riscos e controles internos para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos.
Gestores e fiscais são designados por meio de portaria publicada no Diário Oficial, conforme orientação do Tribunal de Contas da União (TCU). A designação deve ser acompanhada do detalhamento de suas atribuições, prazos e procedimentos, podendo cada órgão regulamentar essas funções conforme suas especificidades.
Perguntas Reflexivas:
1. Como a clareza nas definições de papéis e atribuições pode influenciar a eficácia do controle nas contratações públicas?
2. De que forma o perfil ideal de um gestor ou fiscal de contrato reflete os desafios contemporâneos da administração pública?
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Módulo 2: Princípios Fundamentais da Responsabilidade dos Gestores
A conduta dos gestores públicos é balizada por um conjunto de princípios que visam garantir a probidade, a eficiência e a legalidade na administração dos recursos públicos.
2.1. Princípios Orientadores da Conduta
Ao assumir a posição de gestor, o agente público precisa estar atento a uma série de leis, normas e princípios que devem orientar sua conduta.
• Supremacia do Interesse Público: A licitação tem relação direta com os princípios da indisponibilidade e da supremacia do interesse público. Toda a atuação administrativa deve visar ao bem comum. O direito administrativo tradicionalmente enfatizou a supremacia e indisponibilidade do interesse público.
• Indisponibilidade do Interesse Público: Os interesses da coletividade não podem ser dispostos livremente pelo administrador, que atua como seu guardião. A administração pública só pode fazer o que o interesse público quer, e a inobservância desse princípio pode paralisar a resolução de problemas reais da comunidade.
• Legalidade: A atuação do gestor deve estar estritamente pautada na lei. A inexigibilidade de licitação, por exemplo, sendo uma exceção legal, exige redobrada cautela do gestor para não servir de subterfúgio à inobservância do certame licitatório.
• Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência: São princípios constitucionais fundamentais que devem ser observados em todas as contratações públicas. Atos de improbidade administrativa atentam contra esses princípios. A transparência, eficácia e legalidade são garantidas quando a Administração Pública qualifica, orienta e apoia servidores na gestão e fiscalização contratual.
• Proporcionalidade: Este princípio exige que a avaliação da proporção entre o ato ímprobo e a sanção aplicada seja reavaliada em casos excepcionais. No âmbito da responsabilização, o princípio da proporcionalidade impõe limites ao legislador e ao aplicador da lei, exigindo coerência valorativa entre as diferentes esferas sancionadoras do Estado. O recrudescimento generalizado das penas em licitações questiona a proporcionalidade das sanções e a coerência interna do sistema jurídico-penal brasileiro.
• Integridade e Combate à Corrupção (Compliance): A Lei nº 14.133/2021 aborda o compliance como um instrumento de integridade e combate à corrupção nas contratações públicas. Programas de integridade corporativa e mecanismos de proteção a denunciantes são instrumentos preventivos importantes complementares às sanções para mitigar riscos de corrupção.
2.2. Importância da Gestão de Riscos e Controles Internos na NLLC
A Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLC), em seus artigos 18, inciso X, e 169, tornou obrigatória a realização de análises de riscos nos processos de contratação pública, que deverão submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e de controle preventivo.
• Objetivos da Gestão de Riscos: É uma prática essencial para a integridade e o sucesso das contratações, ajudando a evitar problemas como sobrepreço, desperdício, especificação incorreta e restrição à competitividade. Visa conferir razoável segurança quanto ao alcance dos objetivos da contratação.
• Responsabilidade da Alta Administração: A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela implementação de processos e estruturas de gestão de riscos e controles internos para avaliar, direcionar e monitorar os processos licitatórios e os respectivos contratos.
• Fases da Contratação Pública: A gestão de riscos é um processo contínuo integrado a todas as fases da contratação:
1. Fase Preparatória (Planejamento): Caracterizada pelo planejamento, onde são realizadas análises de riscos que possam comprometer o sucesso da licitação e a boa execução contratual.
2. Fase de Seleção de Fornecedores: Após o planejamento, são lançados editais e selecionado o fornecedor.
3. Fase de Gestão do Contrato: Monitoramento e garantia da prestação dos serviços durante todo o período de execução.
• Controles Internos: Compreendem o conjunto de regras, procedimentos, diretrizes, protocolos, rotinas, sistemas, entre outros, destinados a enfrentar os riscos e fornecer segurança razoável na consecução dos objetivos.
Perguntas Reflexivas:
1. Como o princípio da proporcionalidade pode ser equilibrado com a necessidade de punição rigorosa em casos de desvio de conduta na administração pública?
2. De que maneira a gestão de riscos e os controles internos podem transformar a cultura administrativa, incentivando decisões mais informadas e menos receosas?
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Módulo 3: Tipos de Responsabilidade dos Gestores Públicos
Os gestores públicos estão sujeitos a diferentes esferas de responsabilização: administrativa, civil e penal. Embora independentes, essas instâncias podem ter suas decisões e provas influenciadas mutuamente.
3.1. Responsabilidade Administrativa
No âmbito da responsabilidade administrativa, o gestor e o fiscal do contrato estão sujeitos a medidas disciplinares caso descumpram suas obrigações ou cometam infrações no exercício de suas funções.
• Processos Administrativos Disciplinares (PAD): Podem ser instaurados para apurar a responsabilidade e aplicar sanções administrativas como advertência, suspensão, demissão ou até mesmo a cassação de direitos políticos, dependendo da gravidade da infração.
• Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92): Embora as sanções de improbidade sejam de natureza extrapenal e civil, elas são aplicadas no âmbito administrativo e judicial para coibir atos que atentem contra os princípios da administração, causem prejuízo ao erário ou importem enriquecimento ilícito.
◦ Elemento Subjetivo na Improbidade: Para a correta fundamentação da condenação por improbidade, é imprescindível caracterizar a presença do elemento subjetivo (dolo). A Lei de Improbidade Administrativa não visa punir o inábil, mas sim o desonesto, o corrupto, aquele desprovido de lealdade e boa-fé.
◦ Dolo Específico: As alterações promovidas pela Lei nº 14.230/2021 na LIA estabelecem a necessidade de comprovação do dolo específico, ou seja, a vontade livre e consciente do agente direcionada à realização do resultado ou fim ilícito, para a configuração do ato de improbidade administrativa. Não basta a voluntariedade ou o mero exercício da função.
◦ Erro Grosseiro: A Lei nº 13.655/2018, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), passou a prever que o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro. O erro grosseiro é definido como "aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave", exigindo análise contextualizada das dificuldades reais do gestor. O Tribunal de Contas da União (TCU) o caracterizou como uma grave inobservância do dever de cuidado, que poderia ser percebida por pessoa com diligência abaixo do normal.
◦ Dano ao Erário: Para atos que importam enriquecimento ilícito (art. 9º da LIA), o dano ao erário não é um elemento essencial, mas acidental. No entanto, o ressarcimento integral do dano somente ocorrerá se houver efetivo prejuízo ao erário. Para atos que causam prejuízo ao erário (art. 10 da LIA), a existência de dano é incontestável.
◦ Sanções na LIA (Art. 12): As sanções possuem natureza civil. A Lei nº 14.230/2021 alterou as sanções, graduando-as de acordo com a modalidade de improbidade:
▪ Enriquecimento Ilícito (Art. 9º): Perda dos bens, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos até 14 anos, multa civil equivalente ao acréscimo patrimonial, proibição de contratar e receber benefícios por até 14 anos.
▪ Prejuízo ao Erário (Art. 10): Perda dos bens (se houver enriquecimento), perda da função pública, suspensão dos direitos políticos até 12 anos, multa civil equivalente ao valor do dano, proibição de contratar e receber benefícios por até 12 anos.
▪ Atentado aos Princípios (Art. 11): Multa civil de até 24 vezes a remuneração, proibição de contratar e receber benefícios por até 4 anos.
3.2. Responsabilidade Civil
O gestor e o fiscal do contrato podem ser responsabilizados civilmente por eventuais danos causados a terceiros ou à própria administração devido a ações ou omissões no exercício de suas funções.
• Necessidade de Dolo ou Culpa: Se agirem com negligência, imprudência ou imperícia, e isso resultar em prejuízos, eles podem ser acionados judicialmente para reparar os danos.
• Dano in re ipsa vs. Dano Comprovado: Em casos de dispensa indevida de licitação ou fraude ao processo licitatório, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) possui o entendimento de que há o chamado dano in re ipsa – ou seja, o dano presumido que não exige comprovação para imposição de ressarcimento ao erário, pois o poder público deixa de contratar a melhor proposta. No entanto, para a esfera penal, a comprovação do dano é essencial.
3.3. Responsabilidade Penal
Em casos de condutas ilegais ou criminosas, o gestor e o fiscal do contrato podem ser responsabilizados penalmente. A Lei nº 14.133/2021 promoveu uma reorganização e um recrudescimento das penas para crimes em licitações e contratos administrativos, inserindo-os no Código Penal (arts. 337-E a 337-P).
• Exigência de Dolo Específico e Prejuízo: Na esfera penal, o STJ tem jurisprudência consolidada de que, para a configuração de crimes como dispensa de licitação ou inexigibilidade fora das hipóteses legais, é indispensável a comprovação do dolo específico do agente em causar dano ao erário, bem como do prejuízo à administração pública. Não basta o dolo genérico. Os crimes licitatórios são dolosos, não havendo punição na modalidade culposa. O dolo específico é a finalidade específica de obter vantagem ou lesar os cofres públicos.
• Recrudescimento das Penas: A NLLC elevou as penas mínimas para diversos crimes licitatórios (de 3 para 4 anos na dispensa indevida; de 2 para 4 anos na fraude ao caráter competitivo) e substituiu a detenção pela reclusão na maioria dos tipos.
• Consequências Processuais: O aumento das penas mínimas tem consequências processuais relevantes, como a inviabilização do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), mesmo em casos de mero erro grosseiro sem prejuízo ao erário. O regime inicial de cumprimento da pena mínima pode passar de aberto para semiaberto.
• Disproporcionalidade: Há uma desproporção entre as esferas administrativa e penal. Enquanto a administrativa evoluiu para critérios mais objetivos de dosimetria e exigência de dolo específico, a penal seguiu caminho inverso com o recrudescimento das penas, criando insegurança jurídica e contribuindo para o "apagão das canetas".
Perguntas Reflexivas:
1. Qual a importância de diferenciar as esferas de responsabilidade para a atuação do gestor público?
2. De que forma o aumento das penas e a exigência de dolo específico na esfera penal afetam a tomada de decisão dos gestores de boa-fé?
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Módulo 4: Diferenciação entre Responsabilidade Subjetiva e Objetiva e Responsabilidade Solidária
Compreender a distinção entre responsabilidade subjetiva e objetiva, bem como os cenários de responsabilidade solidária, é fundamental para os gestores públicos.
4.1. Responsabilidade Subjetiva e Objetiva no Contexto das Contratações
A responsabilidade dos agentes públicos, em regra, é subjetiva, dependendo da comprovação de dolo ou culpa em suas ações ou omissões.
• Responsabilidade Subjetiva (Dolo ou Culpa):
◦ Dolo: Para a esfera penal e para a improbidade administrativa pós-Lei nº 14.230/2021, é exigido o dolo específico, ou seja, a intenção livre e consciente de praticar a conduta ilícita e de causar dano ao erário ou obter vantagem indevida. O Tribunal de Contas da União (TCU) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reforçam a necessidade de demonstrar a vontade livre e consciente do agente direcionada para a não realização do ato licitatório e a intenção de trazer prejuízos aos cofres públicos.
◦ Culpa/Erro Grosseiro: Para a responsabilidade administrativa e civil, a culpa (negligência, imprudência ou imperícia) também pode ensejar responsabilização. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), em seu art. 28, prevê que o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas apenas em caso de dolo ou erro grosseiro. O erro grosseiro é aquele "manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave". O TCU o caracteriza como uma grave inobservância do dever de cuidado, evitada por uma pessoa com nível de atenção aquém do ordinário, consideradas as circunstâncias do caso concreto. A mera contratação direta indevida (infração administrativa) não configura automaticamente o crime, que demanda dolo.
◦ Jurisprudência do TCU e STJ: O TCU tem absolvido gestores em casos de conluio em licitação quando as irregularidades eram complexas e só identificadas após investigação aprofundada, e quando não havia dolo ou negligência grave por parte dos agentes. O STJ, por sua vez, tem exigido dolo específico e dano efetivo para a configuração de crimes licitatórios, reforçando a importância da análise do elemento subjetivo.
• Responsabilidade Objetiva (Dano in re ipsa):
◦ No contexto do controle judicial dos atos de gestão pública, especialmente em casos de dispensa indevida de licitação ou fraude ao processo licitatório, o STJ entende que há o chamado dano in re ipsa – ou seja, o dano presumido que prescinde de comprovação. Nestes casos, o dano é presumido porque o poder público deixa de contratar a melhor proposta devido à conduta irregular dos administradores. No entanto, este conceito se aplica principalmente à esfera civil/improbidade, não à penal, que exige dolo e prejuízo.
4.2. Responsabilidade Solidária entre Agentes de Contratação, Fiscais e Gestores de Contratos
A responsabilidade pode ser compartilhada ou solidária entre os diversos agentes envolvidos nos processos de contratação.
• Atuação Conjunta e Complementar: O gestor e o fiscal do contrato devem atuar de forma conjunta e complementar para o desempenho do acompanhamento da execução do contrato, sendo importante que suas obrigações estejam estabelecidas de forma clara.
• Responsabilidade da Administração (Subsidiária): A administração pública pode responder de forma subsidiária pelo não cumprimento das obrigações trabalhistas da empresa contratada, quando restar comprovado que atuou de forma negligente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço. Por isso, a adoção de cautelas, como a exigência de garantias e documentos, é imprescindível.
• Responsabilidade dos Pareceristas (Técnicos e Jurídicos): A responsabilidade dos pareceristas deve ser avaliada com cautela. O Supremo Tribunal Federal (STF) já se posicionou no sentido de que o parecerista (jurídico, no caso) apenas responderia civilmente se houvesse danos decorrentes de culpa em sentido amplo, visto que o parecer não detém caráter vinculativo. No entanto, se o parecerista, por conduta dolosa ou culposa (erro grave, inescusável, imprudência, negligência ou imperícia), emite parecer com erro ou fraude que se mostra indispensável para fundamentar um ato irregular e ilegal do administrador, ele pode ser sujeito à responsabilização solidária juntamente com a autoridade que praticou o ato. A atuação do gestor com base em parecer técnico não afasta sua responsabilidade se ele tinha condições de confirmar a legitimidade do conteúdo ou se não demonstrou a inviabilidade de avaliar o mérito técnico.
• Participação de Terceiros em Atos de Improbidade: O particular (pessoa física ou jurídica) que fornece vantagem econômica a um agente público e figura como terceiro partícipe de um ato de improbidade administrativa, nos moldes do art. 3º da LIA, também se submeterá às penalidades, desde que tenha induzido ou concorrido dolosamente para a prática do ato ímprobo.
Perguntas Reflexivas:
1. Em que situações a presunção de dano (dano in re ipsa) facilita ou dificulta a responsabilização dos gestores, e como isso se compara à exigência de dolo específico na esfera penal?
2. Considerando a complexidade das contratações públicas, como os diferentes agentes (gestores, fiscais, pareceristas) podem garantir uma atuação que minimize riscos de responsabilização solidária?
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Módulo 5: Limites da Atuação do Gestor e Síntese
A atuação do gestor público, embora abrangente, possui limites claros e áreas que exigem cautela redobrada para evitar responsabilização indevida.
5.1. Limites da Atuação do Gestor: O que é indelegável e o que Requer Cautela
O gestor público atua em um ambiente de alta complexidade, e a NLLC, juntamente com outras normas, delineia as fronteiras de sua ação.
• Não Concentração de Funções: Deve-se evitar a concentração de ambas as funções (gestor e fiscal de contrato) em uma mesma pessoa, a fim de evitar a ocultação de erros e a ocorrência de fraudes durante o processo de contratação e execução dos contratos. Além disso, não se deve atribuir uma quantidade significativa de contratos a um mesmo fiscal, pois isso pode acarretar sobrecarga e comprometer o acompanhamento.
• Designação Formal e Detalhamento de Atribuições: A designação formal do gestor e do fiscal deve ser acompanhada do detalhamento de suas principais atribuições, prazos e procedimentos. Para assegurar o correto desempenho, é recomendado que seja anexado ao instrumento contratual um Termo de Responsabilidade, devidamente assinado, ratificando a ciência e anuência quanto à função e responsabilidades.
• Recusa da Função e Dever de Buscar Assessoramento: O servidor designado como gestor ou fiscal do contrato não pode simplesmente recusar a função, a menos que alegue uma razão válida, como impedimento por parentesco ou ausência de conhecimento técnico necessário. Nesses casos, a oposição deve ser formalmente registrada. O gestor não pode alegar mero desconhecimento como forma de afastar sua responsabilidade, devendo acionar outros setores para dirimir dúvidas e obter informações relevantes para prevenir riscos. Setores como o assessoramento técnico de apoio, jurídico ou do controle interno devem ser consultados sempre que necessário.
• Documentação e Fundamentação das Decisões: É crucial que as decisões administrativas sejam bem fundamentadas, documentando os obstáculos e as dificuldades reais que levaram a uma determinada tomada de decisão. Isso serve como resguardo para um futuro controle, especialmente considerando que processos de fiscalização podem ocorrer anos após o ato. A organização de documentos referentes à formalização e execução do contrato, de forma estruturada e digital, é uma prática essencial.
• Responsabilidade da Alta Administração na Gestão de Riscos: A alta administração do órgão ou entidade é responsável pela implementação de processos e estruturas de gestão de riscos e controles internos. A NLLC exige a realização de análises de riscos, sendo esta uma responsabilidade do gestor da área requisitante, que pode solicitar auxílio do Comitê de Riscos e Controles das Contratações (CRC).
• Limites da Confiança em Pareceres Técnicos e Jurídicos: Embora o gestor possa basear suas decisões em pareceres técnicos e jurídicos, essa fundamentação não afasta automaticamente sua responsabilidade. Se o gestor tinha condições de confirmar a legitimidade do conteúdo ou se não demonstrou a inviabilidade de avaliar o mérito técnico do parecer, ele responderá pelas ilegalidades cometidas. A jurisprudência do STJ considera atípica a conduta do servidor que decide pela contratação direta respaldado em parecer jurídico fundamentado, salvo má-fé ou vício no parecer.
• O "Apagão das Canetas": A complexidade da legislação, as sanções rigorosas e a falta de critérios claros para diferenciar erro administrativo de conduta criminosa geram um cenário de insegurança jurídica. Isso pode levar ao fenômeno do "apagão das canetas", onde gestores públicos probos hesitam em tomar decisões por receio de responsabilização excessiva, impactando negativamente a eficiência administrativa e a efetividade das políticas públicas. O objetivo do novo direito administrativo é ser resolutivo, resolvendo os problemas e não gerando o medo de assinar.
Perguntas Reflexivas:
1. Como a ausência de um registro detalhado e justificado das decisões administrativas pode expor o gestor a riscos futuros?
2. De que maneira a cultura organizacional pode ser fortalecida para combater o "apagão das canetas", promovendo uma atuação mais segura e eficiente dos gestores?
5.2. Síntese da Aula
Nesta aula, exploramos os fundamentos da responsabilidade dos gestores públicos nas contratações à luz da Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021). Definimos os papéis do gestor e fiscal de contrato, agentes de contratação e alta administração, destacando suas atribuições e perfis necessários.
Em seguida, abordamos os princípios que orientam a conduta do gestor, como a supremacia e indisponibilidade do interesse público, legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade, eficiência e, crucialmente, o princípio da proporcionalidade. Foi enfatizada a importância da gestão de riscos e dos controles internos, que a NLLC torna obrigatórios em todas as fases da contratação.
Detalhou-se os três tipos de responsabilidade – administrativa, civil e penal – explicando suas características, sanções e a interação entre as instâncias. Foi feita uma distinção crucial entre responsabilidade subjetiva (exigindo dolo, culpa ou erro grosseiro) e a aplicação do dano in re ipsa em casos de improbidade. A responsabilidade solidária, especialmente entre pareceristas e a administração pública em relação a obrigações trabalhistas, foi examinada, ressaltando os cenários em que ocorre e os critérios para sua aplicação.
Por fim, discutimos os limites da atuação do gestor, o que é considerado indelegável e as práticas essenciais para mitigar riscos, como a não concentração de funções, a documentação robusta das decisões e o dever de buscar assessoramento. A problemática do "apagão das canetas" foi apresentada como um desafio central, reforçando a necessidade de uma interpretação sistemática e proporcional das normas para garantir a segurança jurídica e a eficiência da gestão pública. A constante atualização e busca por conhecimento são, portanto, pilares para uma gestão pública responsável e eficaz.
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