Estudos de caso: montagem de um processo licitatório completo - Parte 2

 

Módulo 1 – Fundamentos e Documentos de Planejamento

1. A importância da fase preparatória na NLLC

A Lei nº 14.133/2021, conhecida como Nova Lei de Licitações e Contratos (NLLC), transformou radicalmente o modo como as contratações públicas devem ser planejadas e executadas. Entre as inovações mais relevantes está a elevação do planejamento ao patamar de princípio jurídico, previsto expressamente no texto legal como fundamento indispensável para a eficiência das contratações públicas.
Esse reconhecimento legal significa que o planejamento deixou de ser uma simples etapa burocrática para se tornar o eixo estruturante de todo o processo licitatório, funcionando como a base que garante a boa aplicação dos recursos públicos e a obtenção da proposta mais vantajosa para a Administração.

A nova lei estabelece que nenhum processo licitatório pode se iniciar sem a demonstração clara da necessidade da contratação, dos estudos preliminares que a embasam e dos riscos envolvidos. O objetivo é evitar improvisações, compras desnecessárias e contratações mal definidas, problemas que historicamente resultavam em sobrepreço, paralisações de obras e questionamentos pelos órgãos de controle.
Essa preocupação está refletida no artigo 17 da NLLC, que organiza o processo em duas grandes fases:

  • Fase preparatória (ou interna): momento de planejamento e estruturação, em que se reúnem os estudos técnicos, se define o objeto da contratação, se avaliam os riscos e se elabora toda a documentação necessária para que a licitação possa ser lançada com segurança.
  • Fase externa: etapa em que a Administração torna pública a intenção de contratar, permitindo a apresentação de propostas, julgamento, habilitação, interposição de recursos e homologação do resultado.

A fase preparatória, portanto, não é apenas o início do processo; ela é o momento mais estratégico, pois dela dependem a eficiência da fase externa e a qualidade do contrato final. Quando o planejamento é mal feito ou incompleto, aumentam os riscos de fracasso do certame, impugnações, sobrepreço ou até nulidade do contrato.


2. Documentos que compõem a fase preparatória

O artigo 18 da NLLC detalha quais são os documentos obrigatórios que devem instruir a fase preparatória. Entre os principais estão:

  • Estudo Técnico Preliminar (ETP): é o documento inicial, que identifica o problema, avalia alternativas de solução e demonstra a viabilidade técnica e econômica da contratação.
  • Termo de Referência (TR) ou Projeto Básico (PB): apresentam a descrição detalhada do objeto, requisitos técnicos, metodologia de execução, critérios de medição e de pagamento.
  • Orçamento estimado: define o valor de referência para a disputa, baseado em pesquisa de preços consistente e atualizada.
  • Edital: instrumento convocatório que regulamenta as regras da licitação, suas etapas e obrigações.
  • Análise de riscos: documento que identifica riscos potenciais e propõe medidas preventivas e mitigatórias.

Esses elementos funcionam de forma integrada, permitindo que a Administração comprove, desde o início, que a contratação atende ao interesse público, possui viabilidade financeira e técnica e oferece condições de competitividade.


3. Estudo Técnico Preliminar (ETP)

O Estudo Técnico Preliminar é, em termos práticos, a espinha dorsal do planejamento. Ele é o ponto de partida que justifica toda a contratação, demonstrando de maneira objetiva:

  • A necessidade administrativa e a relevância do problema a ser solucionado;
  • As alternativas de solução existentes no mercado, analisando vantagens, desvantagens e riscos de cada uma;
  • Estimativas de quantidade e de valor, acompanhadas de pesquisas de preços e justificativas para eventuais parcelamentos;
  • Conclusão motivada sobre a melhor solução para a Administração.

O ETP deve ser elaborado com base em dados concretos e pesquisas atualizadas, servindo como guia para todas as decisões posteriores.
De acordo com o §1º do art. 18 da NLLC, ele deve conter, obrigatoriamente:

  • Descrição da necessidade e do problema sob a ótica do interesse público;
  • Estimativas das quantidades e justificativa para o parcelamento ou não do objeto;
  • Estimativa do valor com preços unitários de referência;
  • Posicionamento conclusivo sobre a adequação da contratação.

A lei prevê hipóteses de dispensa ou faculdade de elaboração do ETP. Ele é dispensável em contratações de baixo valor (art. 75, III) e prorrogações de contratos contínuos, e sua elaboração é apenas facultativa em algumas modalidades de dispensa (art. 75, I, II, VII e VIII).
Apesar dessas exceções, recomenda-se que o ETP seja elaborado sempre que possível, pois sua ausência fragiliza a motivação do processo e pode gerar questionamentos por órgãos de controle.


4. Termo de Referência (TR) e Projeto Básico (PB)

Com base nas conclusões do ETP, a Administração elabora o Termo de Referência (TR) ou o Projeto Básico (PB), que são documentos fundamentais para dar clareza ao mercado sobre o que será contratado.
O TR é exigido em contratações de bens e serviços em geral, enquanto o Projeto Básico é indispensável em obras e serviços de engenharia, servindo para dimensionar com precisão os elementos técnicos do contrato.

Segundo o art. 6º, XXIII, da NLLC, o TR deve conter:

  • A definição do objeto, com todas as características e requisitos mínimos;
  • A fundamentação da contratação e a relação direta com o interesse público;
  • As exigências técnicas e de desempenho do bem ou serviço;
  • O modelo de execução e gestão do contrato;
  • Critérios de medição, pagamento e de seleção do fornecedor;
  • A estimativa do valor, com base em pesquisa de preços.

O Projeto Básico, por sua vez, deve trazer informações detalhadas para obras e serviços de engenharia, garantindo que as propostas apresentadas sejam compatíveis com a realidade do empreendimento.
Mesmo quando o Projeto Básico é exigido, é comum que o TR seja utilizado como documento jurídico-administrativo, funcionando como um guia de execução e gestão.


Módulo 2 – Estrutura, Conteúdo e Cláusulas Obrigatórias do Edital

5. O edital como lei interna da licitação

O edital é o documento que convoca os interessados a participar da licitação e estabelece as regras do jogo. Na prática, ele é considerado a “lei interna” do certame, pois vincula tanto a Administração quanto os licitantes ao que nele está escrito. Nenhuma exigência ou condição pode ser criada fora de suas disposições.
O art. 25 da NLLC determina que o edital deve conter, no mínimo:

  • Regras de convocação e prazos;
  • Critérios de julgamento das propostas;
  • Condições de habilitação;
  • Regras para interposição de recursos;
  • Penalidades por descumprimento;
  • Cláusulas de fiscalização, gestão do contrato, entrega do objeto e condições de pagamento.

O edital é elaborado pela equipe de planejamento ou servidor designado, que deve garantir clareza, objetividade e ausência de cláusulas restritivas. Erros nessa fase podem gerar impugnações, atrasos e até a anulação da licitação.

6. Estrutura detalhada e cláusulas mandatórias

Um edital robusto deve conter:

  • Objeto da licitação descrito com precisão, evitando termos vagos ou restritivos;
  • Regras de convocação, incluindo impedimentos de participação, regras para consórcios, cooperativas e tratamento favorecido para Microempresas (ME) e Empresas de Pequeno Porte (EPP);
  • Critérios de julgamento (art. 33), que podem ser menor preço, maior desconto, melhor técnica, técnica e preço, maior lance (leilão) ou maior retorno econômico;
  • Condições contratuais, com anexo de minuta de contrato, contemplando objeto, legislação aplicável, regime de execução, preço, condições de pagamento e hipóteses de extinção;
  • Matriz de riscos, obrigatória em obras ou serviços de grande vulto ou em regimes de contratação integrada ou semi-integrada.

7. Orçamento e anexos

O orçamento estimado pode ter caráter sigiloso, desde que justificado, para evitar manipulações de preço, mas esse sigilo não se aplica aos órgãos de controle.
Entre os anexos obrigatórios estão a minuta de contrato e o TR ou Projeto Básico, que fundamentam a contratação.
Alterações no edital exigem nova divulgação e reabertura de prazos, exceto se a mudança não comprometer a formulação das propostas. O edital deve ainda prever o direito de impugnação por qualquer cidadão (art. 164) e fixar prazos para pedidos de esclarecimento.


Módulo 3 – Exigências de Habilitação e Critérios de Julgamento

8. Habilitação: conceito e momento processual

A habilitação é a fase em que a Administração verifica se o licitante tem capacidade jurídica, técnica, fiscal e financeira para executar o contrato. Pela regra geral da NLLC, a habilitação ocorre após o julgamento das propostas, permitindo que apenas o licitante vencedor apresente toda a documentação, o que torna o processo mais ágil.

Os documentos são divididos em quatro categorias:

  1. Habilitação Jurídica – comprova a existência legal e a regularidade da empresa;
  2. Habilitação Técnica – demonstra a capacidade de executar o objeto;
  3. Habilitação Fiscal, Social e Trabalhista – comprova a regularidade fiscal e trabalhista;
  4. Habilitação Econômico-Financeira – avalia a saúde financeira e a capacidade de cumprimento das obrigações.

9. Exigências específicas e formalismo moderado

A Administração pode exigir atestados de execução de serviços semelhantes, declaração de conhecimento das condições locais ou balanço patrimonial atualizado, desde que as exigências sejam proporcionais ao objeto.
O art. 68 assegura tratamento favorecido às ME e EPP, permitindo que apresentem documentação fiscal irregular durante a licitação, desde que regularizem a situação antes da assinatura do contrato.
A lei adota o formalismo moderado, permitindo diligências para corrigir falhas que não alterem a substância dos documentos, como atualização de certidões vencidas ou complementação de informações.


Módulo 4 – Publicidade no PNCP e Análise Crítica de Editais

10. Publicidade e transparência

O Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) é a plataforma oficial de divulgação dos atos previstos na NLLC. O edital e seus anexos devem ser publicados no PNCP para garantir a eficácia do contrato e de seus aditamentos.
Além do edital, outros documentos como o Plano de Contratações Anual, avisos de contratação direta e atas de registro de preços também devem ser disponibilizados, permitindo o acompanhamento social e o controle dos órgãos fiscalizadores.

11. Sustentabilidade e boas práticas

O planejamento também deve considerar o princípio do desenvolvimento nacional sustentável, previsto no art. 5º da Lei 14.133/2021. Isso autoriza a inserção de critérios ambientais, sociais e econômicos no edital, como exigência de energia limpa, planos de gestão de resíduos ou reserva de vagas para mão de obra de grupos vulneráveis.
Essas práticas, além de estarem alinhadas a políticas públicas de inclusão, ajudam a Administração a alcançar resultados de longo prazo que vão além da simples aquisição de bens e serviços.

12. Riscos e pesquisa de preços

Entre os riscos mais comuns identificados em fiscalizações do TCU estão a ausência de ETP, pesquisas de preços inconsistentes e termos de referência mal elaborados.
A pesquisa de preços é peça central do planejamento e pode utilizar painéis de preços oficiais, contratações recentes, mídia especializada ou consultas a fornecedores, desde que realizadas com transparência e critério.


Considerações Finais

A Nova Lei de Licitações e Contratos impõe uma nova cultura administrativa: contratar bem exige planejar bem.
O sucesso de um processo licitatório não depende apenas de um edital bem escrito, mas de todo um conjunto de estudos, análises e decisões técnicas que antecedem a publicação do certame.
Quando a fase preparatória é bem conduzida, a Administração minimiza riscos, evita litígios, assegura economicidade e cumpre seu dever constitucional de dar eficiência, transparência e legalidade ao gasto público.


Referências (ABNT)

(lista revisada e formatada para uso institucional – mantém as fontes principais da NLLC e manuais do TCU)

BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 abr. 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm. Acesso em: 22 set. 2025.

TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). Licitações e Contratos: Orientações e Jurisprudência do TCU. Brasília, DF: TCU, 2024.

JUSTEN NETO, Marçal. A Fase Preparatória do Processo de Licitação da Lei 14.133/2021. Informativo Eletrônico, Edição 173, jul. 2021.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Manual de Orientação de Pesquisa de Preços. 4. ed. Brasília, DF, 2024.

BRASIL. Manual de Orientações e Boas Práticas na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Portal Gov.br, Brasília, DF, 2024.