Estudos de caso: montagem de um processo licitatório completo - Parte 5

 

Introdução

A Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021, estabelece normas gerais de licitação e contratação para toda a Administração Pública brasileira. Seu advento representou a consolidação e modernização de diversas regras então dispersas em leis antigas, em especial a Lei nº 8.666/1993, a Lei do Pregão (Lei nº 10.520/2002) e dispositivos do Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC).

Entre suas inovações mais relevantes estão: a inversão de fases como regra; a valorização da eficiência, da transparência e da competitividade; a adoção preferencial da forma eletrônica; prazos mais enxutos e procedimentos recursais mais simples.

Este estudo se concentra em três pontos centrais: (1) o rito procedimental: cada fase deve ser observada conforme a lei, (2) a fase de habilitação: documentos, critérios, exceções e diligências, e (3) a fase recursal: tipos, prazos, efeitos. O objetivo é fornecer um material para leitura, compreensão profunda e aplicação prática pelos agentes públicos, especialmente aqueles que trabalham com licitações e contratações.


Rito Procedimental na Lei nº 14.133/2021

O que é rito procedimental

“Rito procedimental” é a sequência ordenada de procedimentos que devem ser seguidos desde o planejamento da licitação até a homologação, com etapas definidas que visam assegurar legalidade, transparência, isonomia, eficiência e probidade. Na Lei 14.133/2021, esse rito está previsto principalmente nos artigos que tratam da fase preparatória, divulgação do edital, apresentação de propostas, julgamento, habilitação, fase recursal e homologação.

Fases do rito da licitação

Segundo a Lei nº 14.133/2021, o rito procedimental ordinário compreende as seguintes fases, em sequência obrigatória, salvo exceções legalmente previstas:

  1. Preparatória
    A fase em que a Administração identifica a necessidade de contratação, define o objeto, dimensiona os recursos, elabora o orçamento estimado, prepara os instrumentos convocatórios (como edital ou termo de referência) e define critérios de julgamento. É uma das fases mais estratégicas porque dela dependem clareza dos requisitos, viabilidade técnica, compatibilidade do custo estimado com o mercado, e minimização de riscos de impugnações e desclassificações.
  2. Divulgação do Edital de Licitação
    Depois de preparado o edital com todos os critérios, regras e condições, ele deve ser tornado público por meio de veículos oficiais, portais de compras/contratações, e também pelo Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP). Divulgar o edital de modo amplo garante acesso, igualdade de oportunidade e publicidade.
  3. Apresentação de Propostas e Lances
    Nessa fase, os interessados submetem suas propostas (componente técnica e/ou financeira, de acordo com o edital) ou, em casos de modalidade de pregão, participam de disputa de lances. O edital deve especificar prazos, condições, documentos necessários, modos de disputa (aberto, fechado, combinado), intervalos entre lances, possibilidade de lances intermediários, entre outros.
  4. Julgamento das Propostas
    Avaliação das propostas com base nos critérios objetivos previamente estabelecidos no edital (como menor preço, maior desconto, técnica e preço, maior retorno econômico etc.). Nessa fase se avalia o mérito da proposta, sem ainda verificar habilitação dos licitantes (salvo nas exceções). A classificação se dá conforme os critérios, elegendo a proposta mais vantajosa conforme o edital.
  5. Habilitação
    Verificação da aptidão jurídica, técnica, fiscal, trabalhista e econômico-financeira do licitante cuja proposta esteja provisoriamente classificada em primeiro lugar (regra da inversão de fases). A documentação exigida deve corresponder ao que está previsto no edital.
  6. Fase Recursal
    Momento em que licitantes que se sentirem prejudicados pela decisão de julgamento ou habilitação manifestam recurso. A Lei estabelece prazos mais curtos e procedimentos simplificados para que o certame não fique indefinidamente paralisado.
  7. Homologação
    É o ato final em que a Autoridade Superior reconhece que todo o procedimento seguiu as exigências legais e regulamentares e declara o vencedor oficialmente. Depois da homologação, há a convocação para assinar o contrato ou documento equivalente.

Inversão de fases

  • Regra geral: A Lei 14.133/2021 estabelece que o julgamento das propostas precede a habilitação (art. 17). Ou seja, primeiro avalia-se qual proposta é mais vantajosa sob os critérios do edital; depois, verifica-se se quem ofereceu essa proposta tem capacidade de cumprir o contrato.
  • Razões práticas: acelera o processo; evita que se faça habilitação documental de licitantes cujas propostas já estavam abaixo de outras mais vantajosas; reduz custos administrativos; estimula melhores propostas.
  • Exceção: o edital pode prever habilitação antes do julgamento, desde que haja motivação expressa, com justificativa clara de que isso é necessário — por exemplo, quando o objeto exigir comprovação prévia de capacidade técnica ou de segurança antes de qualquer adjudicação ou julgamento. Mesmo nesses casos, todos os licitantes devem apresentar a documentação necessária conforme o edital (embora em alguns casos específicos (ex: fiscal) se faça mínima exigência).

Fase de Habilitação (Verificação Documental)

A habilitação é a fase do rito procedimental em que a Administração verifica se o licitante está apto legal, tecnicamente, financeiramente e fiscalmente para executar o objeto da licitação. O propósito é assegurar que aquele que venha a ser contratado tenha condições reais de cumprir as obrigações contratuais.

Conceito e propósito

  • Propósito legal: garantir que o contratado terá capacidade de executar o objeto da licitação, observando os padrões mínimos exigidos no edital, para evitar descumprimento, falhas na execução ou riscos ao interesse público.
  • Momento da habilitação: regra geral depois do julgamento; exceções devidamente justificadas.
  • Documentos exigidos: os explicitados no edital, correspondentes a cada categoria (jurídica, técnica, fiscal, trabalho, econômico-financeira).

Categorias de habilitação

A Lei 14.133/2021 define diversas áreas de verificação documental na habilitação:

Categoria

O que se exige

Fundamento legal

Habilitação jurídica

Comprovação da existência legal da empresa, inscrição em registro comercial, estatuto ou contrato social, poderes do representante legal, registros necessários (autorização, licenças)

Art. 66

Habilitação técnica

Experiência anterior em serviços ou obras semelhantes, atestados de capacidade técnica, qualificação da equipe, equipamentos, capacidade operacional, projetos técnicos ou metodologias exigidas no edital

Art. 67

Habilitação fiscal, social e trabalhista

Regularidade com obrigações fiscais federais, estaduais e municipais; certidões negativas ou positivas com efeitos de negativas; regularidade do FGTS; cumprimento das obrigações trabalhistas; situação perante a Justiça do Trabalho etc.

Art. 68

Habilitação econômico-financeira

Demonstração de saúde financeira por meio de balanço patrimonial, demonstrações contábeis, índices que demonstrem liquidez, capacidade de capital de giro, patrimônio mínimo, capital social  conforme exigido no edital

Art. 69

Regras específicas e benefícios para ME/EPP

  • A Lei Complementar nº 123/2006 é incorporada à NLLC para dar tratamento favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte (ME/EPP).
  • Se ME/EPP apresentar alguma irregularidade fiscal ou trabalhista, poderá ter prazo de até 5 dias úteis, prorrogável por igual período, para sanar a pendência.
  • Importante: essa flexibilidade vale somente para documentos fiscais e trabalhistas; demais requisitos (jurídico, técnico, econômico-financeiro) devem estar completos e atender integralmente ao edital no momento da apresentação da proposta, salvo se edital permitir expressamente outra previsão.

Saneamento de documentos / diligências (Art. 64)

A lei prevê que, mesmo após a entrega dos documentos de habilitação, pode haver diligência para esclarecer ou completar documentos, nas seguintes hipóteses:

  1. Complementação de informações de documentos já apresentados, desde que relativas a situação preexistente à abertura da licitação;
  2. Atualização de documentos cuja validade tenha expirado após a data de recebimento das propostas;
  3. Correção ou retificação de falhas que não afetem a substância do documento nem sua validade jurídica.

Exemplo prático

  • Uma empresa que venceu provisoriamente a licitação (foi classificada em primeiro lugar) não apresentou uma certidão estadual de débitos – embora essa certidão estivesse válida na data de abertura do certame (foi um erro de anexação).
  • A Administração pode, por meio de diligência, solicitar que a empresa apresente essa certidão, com base no Art. 64, se for documento que comprove condição preexistente.
  • Jurisprudência do Tribunal de Contas da União (TCU) entende que esse tipo de saneamento é admissível, porque evita formalismo excessivo e favorece a escolha da proposta mais vantajosa, respeitando-se os princípios da isonomia e eficiência.

Fase Recursal: Recursos Administrativos e Prazos

A fase recursal é crítica para garantir o direito de ampla defesa e contraditório dos licitantes, mas também para evitar que recursos indefinidamente prolonguem ou paralisem o processo licitatório. A Lei 14.133/2021 trouxe regras claras que buscam conciliar essas duas necessidades.

Regra geral para recurso

  • Caberá recurso, em regra, no prazo de 3 (três) dias úteis, contado da data de intimação ou lavratura da ata do ato de habilitação ou inabilitação ou de julgamento. (Lei 14.133/2021, Art. 165, Inciso I)
  • O recurso deve ser dirigido à autoridade que proferiu o ato recorrido.

Procedimento recursal (Rito Ordinário)

  1. Manifestação imediata da intenção de recorrer:
    Deve ocorrer na sessão pública ou logo após a decisão, se for o ato de habilitação ou julgamento. Se não for manifestada na ocasião, há preclusão (ou seja, perde-se o direito).
  2. Apresentação das razões recursais:
    O licitante que manifestou o recurso tem prazo de 3 dias úteis para apresentar as razões de forma escrita, fundamentadas legalmente, técnicas ou econômicas, conforme o caso.
  3. Juízo de retratação:
    A autoridade que proferiu a decisão possui até 5 dias úteis para rever sua decisão após receber o recurso, caso entenda que houve erro ou omissão.
  4. Decisão da Autoridade Superior:
    Se não ocorrer retratação, o processo segue para autoridade superior, que deve decidir em até 20 dias úteis.

Efeito suspensivo

  • A interposição do recurso (e do pedido de reconsideração) normalmente possui efeito suspensivo, isto é, os efeitos do ato recorrido ficam suspensos até que o recurso seja decidido. Isso impede que atos subsequentes que dependam do resultado do recurso sejam executados prematuramente.

Outros recursos, impugnações e prazos

  • Impugnação ao edital / pedidos de esclarecimento:
    Qualquer interessado pode impugnar o edital ou pedir esclarecimentos. O prazo para pedidos de esclarecimento normalmente deve ser até 3 dias úteis antes da data de abertura do certame, conforme previsto no edital. Já impugnações devem também observar os prazos que forem instituídos no edital, mas em muitos casos seguem esse mesmo prazo.
  • Recursos contra sanções administrativas:
    Sanções como advertência, multa, impedimento terão prazos próprios conforme a lei, geralmente 15 dias úteis para apresentação de recurso, observando os ritos de retratação e decisão da autoridade superior.

Boas Práticas, Cuidados e Recomendações para Gestores

Para assegurar que as licitações corram conforme a Lei 14.133/2021, minimizando riscos de falhas, impugnações ou nulidades, seguem recomendações práticas:

  1. Elaboração atenta da fase preparatória
    • Verificar mercado para estimativa de preço realista.
    • Definir claramente critérios de julgamento, habilitação, recursos.
    • Incluir todas as exigências documentais relevantes, mas evitar exigências excessivas que dificultem a competitividade.
  2. Edital claro e transparente
  3. Dispor explicitamente sobre inversão de fases, se prevista.
  4. Estabelecer todos os prazos (habilitação, recurso, impugnações).
  5. Definir claramente quais documentos serão exigidos na habilitação e especificar hipóteses de diligências ou saneamento.
  6. Verificar documentos com antecedência, exigir certidões, atestados que comprovem condições técnicas.
  7. Para ME/EPP, observar a flexibilidade legal, mas garantir que não haja prejuízo de capacidade técnica ou outras exigências essenciais.
  8. Manter registro claro de qualquer diligência: o que foi pedido, prazo concedido, resposta do licitante.
  9. Registre em ata ou documento oficial manifestação imediata de intenção de recorrer.
  10. Conheça os prazos de cada tipo de recurso, para habilitação, julgamento, impugnações, multas.
  11. Assegurar que decisões sejam fundamentadas, tanto no juízo de retratação quanto nas instâncias superiores.
  12. Todas as decisões, atos e recursos devem estar documentados nos autos do processo.
  13. Manter registro das atas das sessões públicas, solicitações de esclarecimento, impugnações, manifestações de recursos etc.
  14. Gestão cuidadosa da fase de habilitação
  15. Fase recursal eficiente
  16. Transparência e registro documental

Conclusão

O rito procedimental, a fase de habilitação e o regime recursal da Lei nº 14.133/2021 configuram, em conjunto, o arcabouço normativo que define como uma licitação deve ser planejada, executada e finalizada com legalidade, isonomia, transparência e eficiência.

As inovações como a inversão de fases, prazos recursais mais curtos e a permissão de diligências para saneamento visam tornar os processos mais céleres e menos burocráticos, sem comprometer o controle ou a segurança jurídica.

Para gestores públicos, advogados e agentes de licitação, conhecer todos esses aspectos não é apenas cumprir a lei, mas também assegurar que contratações públicas sejam vantajosas, seguras e resistentes a questionamentos legais.


Referências ABNT

ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO (AGU). Listas de Verificação. Publicado em 17 mar. 2023. Atualizado em 18 fev. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/agu/pt-br/composicao/cgu/cgu/modelos/licitacoesecontratos/14133/listas-de-verificacao. Acesso em: 29 out. 2024.

DOTTI, Marinês Restelatto. A fase preparatória da licitação e seu rito procedimental – Lei nº 14.133/2021. Blog da Zênite, 2021. Disponível em: https://zenite.blog.br/wp-content/uploads/2021/10/a-fase-preparatoria-da-licitacao-e-seu-rito-procedimental-lei-no-14133.pdf. Acesso em: 29 out. 2024.

FURTADO, Madeline Rocha. A modalidade do pregão e as inovações. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, ano 19, n. 218, fev. 2020.

GOVERNO FEDERAL. Manual de Orientações e Boas Práticas na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Versão do Arquivo nº 01 – abr. 2025. Brasília: Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/compras/pt-br/acesso-a-informacao/manuais/manual-governanca-nas-contratacoes/manual-de-boas-praticas-em-contratacoes-publicas.pdf. Acesso em: 29 out. 2024.

NIEBUHR, Joel de Menezes. Pregão presencial e eletrônico. 7. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Fórum, 2015.

OBSERVATÓRIO DA NOVA LEI DE LICITAÇÕES. Procedimentos auxiliares da Lei n.º 14.133/2021: soluções inteligentes ou labirinto regulatório? 2025. Disponível em: https://www.novaleilicitacao.com.br/2025/07/29/procedimentos-auxiliares-da-lei-n-o-14-133-2021-solucoes-inteligentes-ou-labirinto-regulatorio/. Acesso em: 29 out. 2024.

PIRES, Alisson Gabriel Ferreira; LUSTOSA, Cleidiana Bezerra. Análise comparativa das leis 14.133/2021 e 8.666/1993: novas formas, tipos e etapas da licitação pública. Revista Científica do Tocantins, v. 3, n. 2, p. 1-x, dez. 2023. e-ISSN 2965-1921. Disponível em: https://itpacporto.emnuvens.com.br/revista/article/view/170. Acesso em: 29 out. 2024.

TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). Licitações e Contratos: orientações e jurisprudência do TCU. Brasília, 2024. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/publicacoes-institucionais/cartilha-manual-ou-tutorial/licitacoes-e-contratos-orientacoes-e-jurisprudencia-do-tcu. Acesso em: 29 out. 2024.