Exigências de habilitação: jurídica, fiscal, técnica e trabalhista - Parte 1
MÓDULO 1: Fundamentos Constitucionais, Princípios e a Nova Fase de Habilitação
1.1. Introdução e Base Legal
A habilitação é a fase essencial da licitação em que a Administração Pública verifica se o licitante possui o conjunto de informações e documentos necessários e suficientes para demonstrar sua capacidade de realizar o objeto da contratação.
A Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei nº 14.133/2021) define quatro categorias de habilitação:
1. Jurídica.
2. Técnica.
3. Fiscal, Social e Trabalhista.
4. Econômico-Financeira.
1.2. O Princípio da Proporcionalidade e Razoabilidade
O fundamento maior para as exigências de habilitação reside no art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, que estabelece que as exigências de qualificação técnica e econômica devem ser indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
A Administração deve ater-se a exigir apenas o que for indispensável para assegurar a execução do contrato, evitando exigências que possam limitar a livre concorrência. Requisitos que criem barreiras de acesso desnecessárias ou que sejam incongruentes com o objeto contratual são vedados e passíveis de questionamento.
1.3. Novidade Central: Inversão de Fases
A Lei nº 14.133/2021 estabelece um rito processual padrão onde a Habilitação (Fase V) ocorre após o Julgamento (Fase IV) das propostas e lances.
• Regra Geral: Os documentos de habilitação serão exigidos apenas do licitante vencedor.
• Exceção: A habilitação poderá anteceder o julgamento, mediante ato motivado que explicite os benefícios dessa inversão, e desde que esteja expressamente prevista no edital.
Orientação para Gestores Públicos: A inversão de fases (habilitação após o julgamento) visa trazer maior celeridade ao processo licitatório, pois evita a análise burocrática dos documentos de todos os participantes.
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MÓDULO 2: Habilitação Jurídica
2.1. Propósito e Base Legal
A Habilitação Jurídica (Art. 66 da Lei nº 14.133/2021) visa demonstrar a capacidade do licitante de exercer direitos e assumir obrigações.
A documentação exigida se limita à comprovação de:
1. Existência jurídica da pessoa.
2. Autorização para o exercício da atividade a ser contratada, quando cabível.
Ao contrário da Lei nº 8.666/1993, a nova lei não detalhou exaustivamente os documentos, focando apenas no propósito da comprovação.
2.2. Documentos Comprobatórios (Exemplos não exaustivos)
Embora a lei não traga um rol taxativo no Art. 66, os gestores devem exigir documentos que comprovem a existência da pessoa jurídica (e de seus representantes legais) e a compatibilidade do objeto social.
• Pessoa Jurídica: Contrato Social, Estatuto ou Ato Constitutivo em vigor, devidamente registrado, comprovando a existência da empresa.
• Autorização para Atividade: Quando aplicável, exigência de registro ou inscrição na entidade profissional competente, desde que vinculada ao objeto licitado.
2.3. Jurisprudência do TCU: Compatibilidade do Objeto Social
O Tribunal de Contas da União (TCU) possui entendimento consolidado sobre a necessidade de compatibilidade entre o objeto do certame e as atividades previstas no contrato social das empresas licitantes.
• Orientação TCU: A inabilitação só é viável se o objeto social for incompatível com o da licitação. Atestados de serviços devem estar em conformidade com o contrato social, sob pena de serem considerados inválidos.
• Orientação para Gestores Públicos: Ao elaborar o edital, o gestor deve verificar se o ramo de atividade da empresa licitante é compatível com o objeto a ser contratado, evitando a aceitação de atestados que demonstrem serviços prestados fora do objeto social, o que poderia configurar irregularidade.
2.4. Participação de Empresas Estrangeiras (Novidades)
A Lei nº 14.133/2021 permite a participação de empresas estrangeiras. Quando a empresa estrangeira não funcionar no País, ela deverá apresentar documentos equivalentes, na forma do regulamento emitido pelo Poder Executivo Federal.
• Tradução: Os documentos estrangeiros podem ser apresentados inicialmente em tradução livre, sendo exigida a tradução juramentada somente para fins de assinatura do contrato ou ata de registro de preços, no caso do licitante vencedor.
• Apostilamento/Consularização: Para a assinatura do contrato, os documentos devem ser apostilados (conforme Decreto nº 8.660/2016) ou consularizados.
• Registro Profissional: Sociedades estrangeiras devem apresentar, no momento da assinatura do contrato, a solicitação de registro perante a entidade profissional competente no Brasil, se aplicável.
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MÓDULO 3: Habilitação Fiscal, Social e Trabalhista
3.1. Propósito e Base Legal
As Habilitações Fiscal, Social e Trabalhista (Art. 68 da Lei nº 14.133/2021) buscam comprovar que o licitante está regular perante as obrigações legais decorrentes de legislação específica.
Os requisitos a serem comprovados incluem:
1. Inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) ou no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ).
2. Inscrição no cadastro de contribuintes estadual e/ou municipal, se for o caso, relativo ao domicílio ou sede do licitante, pertinente ao seu ramo de atividade e compatível com o objeto contratual.
3. Regularidade Fiscal Federal e Dívida Ativa da União.
4. Regularidade Estadual e Municipal.
5. Regularidade perante o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
6. Regularidade perante a Justiça do Trabalho (Certidão Negativa de Débitos Trabalhistas – CNDT).
3.2. Prazo das Certidões e Princípio da Regularidade
Embora a lei não defina um prazo de validade geral, as certidões de regularidade perante a Fazenda Nacional e a Justiça do Trabalho seguirão a forma e as condições estabelecidas em suas respectivas regulamentações.
• Regularidade vs. Quitação: A Administração Pública não deve exigir a apresentação de certidão de quitação de obrigações fiscais, mas sim prova de sua regularidade. A aceitação de certidões positivas com efeito de negativa (débito com exigibilidade suspensa ou parcelamento) é plenamente possível, em consonância com a jurisprudência (Súmula TCU 283).
3.3. Novidade Trabalhista: Declaração de Custos Integrais
Uma novidade relevante da Lei nº 14.133/2021 é a exigência de que o edital contenha uma cláusula que exija dos licitantes, sob pena de desclassificação, a declaração de que suas propostas econômicas compreendem a integralidade dos custos para atendimento dos direitos trabalhistas.
Essa declaração deve abranger os direitos assegurados na Constituição Federal, leis trabalhistas, normas infralegais, convenções coletivas de trabalho e termos de ajustamento de conduta vigentes na data de entrega das propostas.
• Exemplo Prático (Modelo de Edital): Um edital de Concorrência Internacional (ou qualquer modalidade) deve incluir um modelo de declaração onde a licitante atesta que a sua proposta de custos compreende a integralidade dos direitos trabalhistas.
3.4. Reserva de Cargos
Será exigida do licitante a declaração de que cumpre as exigências de reserva de cargos para pessoa com deficiência (PCD) e para reabilitado da Previdência Social. O cumprimento dessa reserva deve ser mantido ao longo de toda a execução do contrato. O contratado deve comprovar o cumprimento da reserva sempre que solicitado pela Administração.
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MÓDULO 4: Tratamento Diferenciado para ME/EPP e Exceções na Habilitação
4.1. Base Legal e Abrangência do Benefício
A Lei nº 14.133/2021 integra o tratamento favorecido previsto na Lei Complementar nº 123/2006 (Estatuto Nacional da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte).
Este tratamento diferenciado aplica-se a:
• Microempresas (ME).
• Empresas de Pequeno Porte (EPP).
• Agricultor Familiar, Produtor Rural Pessoa Física e Microempreendedor Individual (MEI), nos limites legais.
4.2. Tratamento Diferenciado na Regularidade Fiscal e Trabalhista
A principal vantagem concedida às ME/EPP e ao MEI na fase de habilitação é a flexibilização da comprovação da regularidade fiscal e trabalhista.
• Fase de Habilitação: As ME/EPP deverão apresentar toda a documentação exigida, mesmo que com restrições (ou seja, com pendências relativas à regularidade fiscal e trabalhista).
• Fase de Assinatura do Contrato: A comprovação da regularidade fiscal e trabalhista somente será exigida para efeito de assinatura do contrato.
Orientação para Gestores Públicos: O licitante ME/EPP que for o vencedor terá um prazo para regularizar sua situação fiscal e trabalhista. É crucial que o edital reflita essa condição, em conformidade com os artigos 42 e 43 da LC nº 123/2006.
4.3. Dispensa de Documentos Contábeis para ME/EPP e MEI
O Microempreendedor Individual (MEI) está dispensado da apresentação do Balanço Patrimonial e Demonstrações Contábeis, em observância ao Código Civil.
As ME/EPP também têm flexibilidade em relação à documentação econômico-financeira: não será exigida a apresentação de balanço patrimonial para o fornecimento de bens para pronta entrega ou para locação de materiais. Contudo, para obras, serviços e bens de entrega parcelada (e Atas de Registro de Preços, que não são consideradas pronta entrega), a habilitação econômico-financeira, incluindo o balanço patrimonial, deve ser exigida de ME/EPP.
4.4. Dispensa de Habilitação em Casos Específicos
A Lei nº 14.133/2021 dispensa a apresentação de documentos de habilitação, no todo ou em parte, em contratações de baixo risco ou baixo valor:
1. Contratações para entrega imediata: Considerada aquela com prazo de entrega de até 30 dias da ordem de fornecimento.
2. Contratações com valores inferiores a ¼ do limite para dispensa de licitação para compras em geral.
Nesses casos, a dispensa de habilitação total ou parcial deve ser observada. Na dispensa de licitação para contratações de entrega imediata e de baixo valor, somente será exigida das pessoas jurídicas a comprovação da regularidade fiscal federal, social e trabalhista.
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MÓDULO 5: Cadastros Eletrônicos, Jurisprudência do TCU e Orientações
5.1. O Uso de Cadastros Eletrônicos (SICAF e PNCP)
A Nova Lei de Licitações possui uma forte preferência pelo meio digital e eletrônico nos processos de contratação.
O Art. 70 da Lei nº 14.133/2021 estabelece que a documentação de habilitação poderá ser:
• Apresentada em original, cópia, ou outro meio admitido.
• Substituída pelo registro cadastral emitido por órgão ou entidade pública, como o SICAF (Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores).
Para a habilitação jurídica, fiscal, social e trabalhista, e econômico-financeira, o registro cadastral no SICAF (ou sistemas similares dos estados/municípios) pode substituir a apresentação dos documentos, desde que previsto no edital.
• PNCP: O Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) foi instituído como o sítio eletrônico oficial para a divulgação centralizada e obrigatória dos atos. O desempenho pretérito do licitante será registrado no cadastro cadastral unificado disponível no PNCP, sendo um critério de avaliação técnica.
5.2. Novidades em Declarações e Diligências
Declaração de Atendimento: Pode ser exigida dos licitantes a declaração de que atendem aos requisitos de habilitação (o licitante responde pela veracidade das informações).
Vistoria Prévia: A vistoria ao local de execução, se for imprescindível, pode ser exigida, sob pena de inabilitação. Contudo, o edital deve prever a possibilidade de substituição da vistoria por uma declaração formal assinada pelo responsável técnico do licitante, atestando o pleno conhecimento das condições locais. Se for realizada, a Administração deve disponibilizar data e horário diferentes para os interessados.
Diligências: Após a entrega dos documentos, a regra é que não se permite a substituição ou apresentação de novos documentos. Contudo, a lei permite diligência para:
1. Complementação de informações acerca de documentos já apresentados (se fatos existiam à época da abertura).
2. Atualização de documentos cuja validade expirou após o recebimento das propostas.
5.3. Jurisprudência do TCU sobre Habilitação
A jurisprudência do TCU reforça a aplicação dos princípios constitucionais e o rigor na fiscalização das exigências:
• Exigências Desarrazoáveis: O TCU já se manifestou contra o excesso de rigor e a exigência desarrazoada de documentos, privilegiando a ampla competitividade. A exigência de certificados de qualidade como condição de habilitação, por exemplo, afronta a Lei nº 14.133/2021.
• Compatibilidade do Objeto Social: É irregular aceitar atestados de prestação de serviços incompatíveis com as atividades econômicas previstas no contrato social do licitante.
• Vistoria: A vistoria só deve ser exigida quando imprescindível e deve ser justificada. Exigir que a vistoria seja realizada apenas pelo responsável técnico ou em data única restringe a competitividade.
• Capacidade Técnica (Geral): As exigências de qualificação técnica devem admitir experiência em obras ou serviços com características semelhantes ou de complexidade superior, e não necessariamente idênticas.
5.4. Orientações Finais para Gestores Públicos
A fase de habilitação é definida durante a fase preparatória da licitação. O Art. 18, inciso IX, da Lei nº 14.133/2021 exige a motivação circunstanciada das condições do edital.
1. Planejamento Rigoroso: Todas as exigências de habilitação, seja jurídica, fiscal ou trabalhista, devem ser justificadas e correlacionadas com o objeto da contratação (princípio da vinculação e da proporcionalidade).
2. Prestigiar a Competitividade: Use o rol de documentos mínimos necessários e evite exigências que restrinjam a participação, como a vedação ao somatório de atestados técnicos (em outras categorias) ou a exigência de quitação total de tributos.
3. Inclusão de ME/EPP: Incorpore automaticamente as regras da LC 123/2006, permitindo a participação de ME/EPP com irregularidade fiscal/trabalhista, mas exigindo a regularização para a assinatura do contrato.
4. Digitalização: Priorize a utilização do SICAF ou outros sistemas cadastrais unificados para a comprovação da habilitação, conforme permitido pelo Art. 70.
5. Diligência e Saneamento: Utilize o mecanismo de diligência (Art. 64) para sanar erros ou falhas formais que não alterem a substância dos documentos, prezando pela busca da proposta mais vantajosa.
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Referências (ABNT)
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BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm. Acesso em: 29 ago. 2024.
BRASIL. Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006. Institui o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp123.htm. Acesso em: 29 ago. 2024.
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BRASIL. Tribunal de Contas da União. Licitações e Contratos: Orientações e Jurisprudência do TCU. Brasília, DF: TCU, [s.d.]. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/publicacoes-institucionais/cartilha-manual-ou-tutorial/licitacoes-e-contratos-orientacoes-e-jurisprudencia-do-tcu. Acesso em: 29 ago. 2024.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado da Bahia. Núcleo de Licitação. Pregão Eletrônico nº 026/2024. Check-list – Habilitação PRO. Salvador, BA: TJBA, 2024. Disponível em: https://www7.tjba.jus.br/secao/licitacao/esclarecimentos/37841/CHECKLIST%20-%20HABILITACAO%20-%20BLRS%20-%20PE026-2024.pdf. Acesso em: 29 ago. 2024.
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