Análise de jurisprudências do TCU e boas práticas de gestão contratual - Parte 1

ANÁLISE DE JURISPRUDÊNCIAS DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU)
Introdução
A promulgação da Lei nº 14.133/2021, a Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLLC), marcou um ponto de inflexão na gestão pública, exigindo dos gestores um profundo conhecimento não apenas da norma legal, mas também da jurisprudência administrativa. Em um cenário de constante evolução e busca por transparência e eficiência, o Tribunal de Contas da União (TCU) emerge como um ator central no Controle Externo, cujas decisões moldam a conduta da Administração Pública.
Esta aula tem como objetivo apresentar o conceito de jurisprudência administrativa do TCU e analisar as principais deliberações da Corte de Contas que impactam diretamente as fases de planejamento, execução e gestão de contratos, bem como o regime sancionatório estabelecido pela NLLC.
1. Jurisprudência Administrativa do TCU e a Nova Lei de Licitações
A jurisprudência administrativa do Tribunal de Contas da União (TCU) compreende o conjunto de interpretações e especificações reiteradas, contidas em seus Acórdãos e outras deliberações, que servem como padrão para a aplicação da legislação. No contexto da Lei nº 14.133/2021, a jurisprudência do TCU é crucial, pois atua como uma fonte de orientação geral, ajudando os gestores a interpretar dispositivos legais complexos e a mitigar riscos no processo de contratação.
O TCU faz parte da segunda linha de defesa na governança das contratações (junto ao órgão central de controle interno), e suas decisões definem os limites e as boas práticas que devem ser observadas pelos gestores. A importância da jurisprudência reside em sua capacidade de oferecer segurança jurídica ao delinear a aplicação dos princípios e objetivos da licitação, como a busca pela proposta mais vantajosa e o desenvolvimento nacional sustentável.
1.1. O Papel da Jurisprudência como Instrumento de Uniformização e Orientação
A jurisprudência do TCU tem um papel essencialmente uniformizador, garantindo que a aplicação da lei seja consistente em toda a Administração Pública Federal (e servindo de referência para estados e municípios). Essa uniformização orienta a gestão pública ao consolidar entendimentos sobre temas sensíveis, como a exequibilidade das propostas ou a responsabilidade dos agentes.
A adesão às orientações e decisões do TCU é fundamental para os gestores, pois o descumprimento injustificado de recomendações ou decisões do Tribunal de Contas pode ser interpretado como um indicativo de dolo específico em um ato de improbidade, conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
2. Análise de Acórdãos e Deliberações do TCU por Tema
A atuação do TCU abrange todas as fases do ciclo de contratação pública (planejamento, seleção do fornecedor e gestão do contrato). Abaixo, são destacados entendimentos relevantes em áreas críticas:
2.1. Planejamento e Estudo Técnico Preliminar (ETP)
O planejamento é a fase inaugural e crucial, visando racionalizar as contratações e alinhar os gastos ao interesse público. O Estudo Técnico Preliminar (ETP) é a peça inaugural da fase preparatória.
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Tema |
Acórdão e Entendimento |
Comentário |
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Publicação do ETP |
Acórdão nº 2273/2024 – Plenário: O TCU exarou que a Lei nº 14.133/2021 não obriga a publicação do ETP. Contudo, caso a divulgação seja considerada benéfica para embasar os licitantes, ela é permitida, desde que os riscos de informações conflitantes com o Termo de Referência (TR)/Projeto Básico (PB) sejam previamente mitigados. |
Embora a NLLC reforce a transparência, o TCU balanceia a abertura de informações com a necessidade de evitar riscos processuais. |
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Exequibilidade da Proposta |
Acórdão 465/2024-Plenário e Acórdão 2088/2024-Segunda Câmara: O critério de inexequibilidade de preços (previsto no art. 59, § 4º, da Lei nº 14.133/2021) gera uma presunção relativa, e não absoluta, devendo a Administração dar à licitante a oportunidade de demonstrar a exequibilidade de sua proposta. |
O TCU mantém o entendimento consolidado na Súmula 262 (relativa à Lei nº 8.666/1993), reforçando a necessidade de diligência para evitar o afastamento de propostas vantajosas. O planejamento deficiente pode levar a orçamentos superestimados, e a presunção absoluta poderia levar a descontos excessivos e não cumpridos. |
2.2. Fiscalização e Gestão de Contratos
A Lei nº 14.133/2021 estabelece os deveres de gerenciamento, monitoramento e fiscalização da execução contratual. A execução deve ser acompanhada por fiscais e gestores designados.
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Tema |
Acórdão e Entendimento |
Comentário |
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Designação de Agentes |
Acórdão n.º 1094/2013 (TCU): A designação do gestor e do fiscal de contrato deve ser feita por meio de portaria publicada no Diário Oficial, com detalhamento das atribuições e ciência dos servidores. |
A formalização do ato de designação e o detalhamento das responsabilidades são cruciais para a responsabilização e para a segurança jurídica dos agentes. |
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Responsabilidade de Fiscal e Gestor |
Acórdão nº 319/2010 – Plenário (TCU): A responsabilidade solidária entre o fiscal e o gestor não é automática. Ela pode ser afastada se for demonstrado que o fiscal não dispunha de meios materiais adequados, apoio técnico ou respaldo da chefia para exercer suas atribuições. Nesses casos, a responsabilidade pode recair sobre o agente nomeante. |
Este entendimento relativiza a responsabilidade, mas não a elimina. Os agentes não podem alegar mero desconhecimento, mas podem acionar apoio técnico e jurídico para dirimir dúvidas. |
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"Pagamento por Química" e Dano ao Erário |
Acórdão 2140/2021-Plenário (TCU): A prática de "pagamento por química" (utilizar serviços previstos, mas não executados, para cobrir outros serviços ou aquisições sem amparo contratual) é considerada uma irregularidade grave, pois implica afastamento indevido da licitação e falsidade ideológica. A não comprovação da efetiva realização dos serviços/aquisições enseja dano ao erário. |
O TCU responsabiliza o Comandante da Unidade Militar, o Ordenador de Despesas e as empresas, julgando as contas como irregulares e aplicando débito e multa, além de inabilitação para cargo em comissão. |
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Dever de Sancionar |
Acórdão 2916/2013 – Plenário (TCU): O não cumprimento do contrato enseja a aplicação das sanções previstas à empresa contratada, não se tratando de decisão discricionária dos gestores. |
A aplicação de penalidades é um dever do gestor público, essencial para a manutenção da integridade e da eficiência. |
2.3. Alterações Contratuais e Aditivos
As alterações contratuais devem respeitar os limites legais (como os previstos no art. 125 da Lei nº 14.133/2021). O TCU exige a devida formalização para garantir a legalidade.
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Tema |
Acórdão e Entendimento |
Comentário |
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Formalização de Alterações |
Acórdão 1227/2012-Plenário (TCU): Alterações contratuais sem a devida formalização mediante termo aditivo configuram contrato verbal, o que pode levar à apenação dos gestores omissos quanto ao cumprimento do dever. |
A formalização escrita, inclusive eletrônica, dos aditivos é uma exigência legal (art. 91 da NLLC), e a omissão caracteriza infração grave. |
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Extensão de Prazo Expirado |
Acórdão 1936/2014 - Plenário (TCU): A retomada de contrato cujo prazo de vigência está expirado configura recontratação sem licitação, o que ofende o princípio constitucional da licitação (art. 37, XXI, da CF). |
A NLLC prevê regras claras sobre a duração e prorrogação dos contratos, e a gestão negligente do prazo final acarreta ilegalidade. |
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Revisão de Preços por Comparação |
Acórdão 3011/2014 - Plenário (TCU): É juridicamente inadmissível a revisão de preços sob o argumento de compatibilizá-los aos praticados em outros contratos da entidade contratante, pois a adoção de preços diferentes em contratos distintos não implica ruptura do equilíbrio econômico-financeiro da proposta vencedora da licitação. |
A revisão deve se dar por fatos supervenientes que alterem o equilíbrio inicial (Art. 131 da NLLC), e não por mera comparação com outros contratos. |
2.4. Sanções e Responsabilização de Agentes Públicos e Empresas
O poder sancionatório da Administração deve ser exercido sempre que necessário, de forma justa e conduzido por profissionais capacitados. As sanções previstas na L. 14.133/2021 incluem advertência, multa, impedimento de licitar e contratar e declaração de inidoneidade.
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Tema |
Acórdão e Entendimento |
Comentário |
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Dolo Específico em Improbidade |
Jurisprudências do STJ e TJMG: Para a caracterização de atos de improbidade, especialmente após a Lei nº 14.230/2021, é necessária a demonstração de dolo específico (intenção clara de obter benefício ou causar prejuízo) e, em muitos casos, de dano efetivo ao erário. |
O mero pagamento sem contrapartida não é, por si só, suficiente para provar o dolo do gestor. No entanto, a frustração dolosa da licitação, como o fracionamento indevido, continua sendo ato ímprobo. |
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Consequência do Atraso na Execução |
Acórdão 2714/2015-Plenário (TCU): O atraso na execução de obras públicas é considerado de extrema gravidade. Se a Administração der causa ao atraso, é cabível a apuração de responsabilidades dos gestores. Se o atraso advier da contratada, o órgão tem o dever de aplicar multas e penalidades. |
A responsabilização do gestor pode ocorrer tanto por ação (causar o atraso) quanto por omissão (deixar de sancionar o contratado). |
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Dolo por Descumprimento de Orientações |
REsp n. 1.537.858/DF (STJ): O descumprimento injustificado de orientação jurídica do órgão ou de recomendações/decisões do Tribunal de Contas implica o reconhecimento do dolo específico do ato ímprobo. |
Este é um dos impactos mais diretos do TCU na conduta do gestor: ignorar um Acórdão relevante transforma um erro administrativo em um ato passível de sanção por improbidade. |
3. Impacto na Conduta dos Gestores e Função Pedagógica do TCU
As decisões do TCU têm um impacto direto e transformador na conduta dos gestores públicos. Elas não apenas fiscalizam a aplicação da lei, mas também estabelecem um padrão de diligência e responsabilidade.
1. Segurança Jurídica e Tomada de Decisão: A jurisprudência, ao ser clara sobre o que é ou não permitido (ex: a inadmissibilidade de contrato verbal ou o dever de aplicar sanções), fornece aos gestores um referencial seguro para a tomada de decisões. Isso é crucial, visto que os gestores são desafiados pelas mudanças da NLLC e pela complexidade dos procedimentos.
2. Foco no Planejamento e na Governança: O TCU reforça que a alta administração é responsável pela governança das contratações, exigindo a implementação de processos e estruturas de gestão de riscos e controles internos. As decisões sobre planejamento (como a presunção relativa de inexequibilidade) obrigam os agentes a documentar e justificar tecnicamente suas escolhas, realizando diligências necessárias para garantir a vantagem da contratação.
3. Profissionalização e Transparência: O TCU atua ativamente na capacitação de servidores e valoriza a gestão por competência na designação dos agentes públicos. As orientações sobre fiscalização, como a necessidade de verificar a regularidade fiscal e trabalhista e coordenar as atividades dos fiscais, elevam o padrão de responsabilidade e exigem a atuação de servidores qualificados.
3.1. Jurisprudência como Fonte de Aprendizado Institucional e Prevenção
A atuação jurisprudencial do TCU exerce uma função crucial de aprendizado institucional e prevenção de irregularidades. A divulgação centralizada de atos e contratos por meio do Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), por exemplo, potencializa a transparência e o controle social, refletindo a busca pela modernização dos processos.
A própria metodologia de trabalho imposta pelo TCU, como o sistema de Controle em três linhas de defesa, incentiva que as áreas de execução (primeira linha) e os controles internos (segunda linha) atuem preventivamente, antes que as falhas cheguem à Corte de Contas (terceira linha). As sanções administrativas, por sua vez, têm uma finalidade propedêutica, visando desestimular a reincidência e afastar os maus prestadores de serviços, o que leva a uma melhoria constante na prestação de serviço e aquisição de bens.
4. Conclusão: A Função Pedagógica e Preventiva da Atuação Jurisprudencial
A análise da jurisprudência do TCU demonstra que o Tribunal de Contas, como órgão de Controle Externo, transcende a mera função repressiva. As decisões da Corte, ao interpretarem e complementarem a Lei nº 14.133/2021, cumprem um papel pedagógico e preventivo fundamental.
O TCU, por meio de seus Acórdãos, ensina aos gestores a importância do planejamento detalhado (ETP, gestão de riscos), a obrigatoriedade da diligência (na fiscalização e avaliação de exequibilidade), e o dever de agir (aplicação de sanções). Essa orientação contínua é um mecanismo de governança que garante que os objetivos da NLLC — como a obtenção da proposta mais vantajosa e a busca por integridade — sejam atingidos. O conhecimento e a aplicação da jurisprudência do TCU transformam a Administração, migrando de uma cultura de reação para uma cultura de antecipação e conformidade, onde a segurança jurídica dos agentes é inversamente proporcional ao grau de desvio das orientações da Corte.
O gestor público que internaliza a jurisprudência do TCU utiliza-a como um mapa de risco constantemente atualizado, permitindo-lhe navegar as complexidades da NLLC de forma eficiente, transparente e, sobretudo, responsável com o erário.
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REFERÊNCIAS
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1227/2012-Plenário.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1936/2014-Plenário.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 2140/2021-Plenário.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 2714/2015-Plenário.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 2916/2013-Plenário.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 3011/2014-Plenário.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 465/2024-Plenário.
BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 803/2024-Plenário.
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). AgInt nos EDcl no REsp n. 1.768.198/PB. Relator Ministro Paulo Sérgio Domingues. Primeira Turma. Julgamento em 16/6/2025.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). REsp n. 1.537.858/DF. Relator Ministro Francisco Falcão. Segunda Turma. Julgamento em 13/5/2025.
CONTROLADORIA-GERAL DO ESTADO DE GOIÁS. Guia do gestor e do fiscal de contratos.
MINISTÉRIO DA GESTÃO E DA INOVAÇÃO EM SERVIÇOS PÚBLICOS. Manual de Orientações e Boas Práticas na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Portal Gov.br.
SANTOS, Ronny Charles Lopes de. Guia Gestor e Fiscal de Contrato. Prefeitura do Jaboatão dos Guararapes.
SOUZA, Robson Soares de. CURSO COMPLETO DE LICITAÇÕES E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS – LEGISLAÇÃO, PRÁTICA E JURISPRUDÊNCIA - Módulo V. Instituto Global de Administração Pública.
WESCLAY ALVES, Dr. Desafios da Nova Lei de Licitações para os Gestores Públicos: Uma Análise Abrangente Introdução.
ZÊNITE. Confira as questões passíveis de recursos da prova para o TCE-RS - Ceisc.
ZÊNITE. GUEDIM JÚNIOR, Tales. Sanções administrativas e seus avanços na nova Lei de Licitações: aspectos comparativos das Leis de nº 8.666/1993, nº 10.520/2002 e nº 14.133/2021.


