Contratações diretas: hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação - Parte 1

CONTRATAÇÕES DIRETAS: HIPÓTESES DE DISPENSA (LEI Nº 14.133/2021)
1. Introdução e Conceituação Fundamental
A Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos - NLLCA) estabelece a licitação como a regra geral para a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração Pública, visando assegurar a isonomia e a justa competição. Contudo, a própria legislação prevê exceções a essa regra, configurando o que se denomina Contratação Direta. A contratação direta abrange as hipóteses de Dispensa de Licitação e de Inexigibilidade de Licitação.
1.1 Dispensa versus Inexigibilidade de Licitação
A distinção entre os dois institutos, ambas formas de contratação direta, reside na natureza da competição:
1. Dispensa de Licitação (Art. 75 da Lei nº 14.133/2021): Ocorre nas situações expressamente listadas em lei (taxatividade) nas quais, embora a competição seja potencialmente viável, a Administração é autorizada a não realizá-la em função de critérios de oportunidade, valor, segurança ou urgência. Nestes casos, o legislador opta por afastar o dever de licitar em prol de outro interesse público relevante.
2. Inexigibilidade de Licitação (Art. 74 da Lei nº 14.133/2021): Caracteriza-se pela inviabilidade de competição. Ou seja, não há como realizar o procedimento licitatório por haver apenas um objeto ou fornecedor que satisfaça a necessidade da Administração.
Exemplos de inexigibilidade incluem a contratação de fornecedor exclusivo, artista consagrado pela crítica ou opinião pública, ou serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual com notória especialização. A inexigibilidade foca na ausência de alternativas de contratação, enquanto a dispensa reconhece que, embora existam alternativas, a lei permite o afastamento da licitação por razões específicas e pré-determinadas.
2. Fundamentos Jurídicos da Dispensa de Licitação
As hipóteses de dispensa de licitação estão fundamentalmente previstas no Art. 75 da Lei nº 14.133/2021. Tais fundamentos são balizados por princípios basilares da Administração Pública, como o interesse público, a eficiência e a celeridade, buscando a otimização dos recursos e o atendimento célere de demandas específicas.
A lista de hipóteses de dispensa é exaustiva e abrange uma vasta gama de situações, sendo as principais categorizadas a seguir, com base nas previsões listadas no manual do TCU:
2.1 Dispensa em Razão do Valor (Arts. 75, I e II)
Esta é uma das formas mais comuns de contratação direta. A lei permite a dispensa para contratações de pequeno valor, nas seguintes categorias:
• Obras e serviços de engenharia: Limite aplicável para obras e serviços de engenharia ou de serviços de manutenção de veículos automotores.
• Outros serviços e compras: Limite aplicável para outros serviços e compras.
Embora os valores exatos e suas atualizações não estejam detalhados nos extratos fornecidos, a importância desses limites reside na simplificação e na racionalização administrativa de contratações de baixa complexidade ou de custo reduzido, onde o processo licitatório seria desproporcional ao benefício esperado.
2.2 Outras Hipóteses de Dispensa (Art. 75 e Incisos Posteriores)
O Art. 75 da NLLCA prevê inúmeras situações que justificam a dispensa, motivadas por variados fatores:
• Emergência ou Calamidade Pública (Art. 75, VIII): Contratações necessárias para atender a situações de emergência ou calamidade pública, limitada a bens necessários ao atendimento da situação e à parcela estritamente necessária, com prazo de execução máximo de 1 ano.
• Licitação Deserta ou Fracassada (Art. 75, III): Quando não acudirem interessados (deserta) ou quando as propostas apresentadas forem desclassificadas (fracassada). A dispensa só é permitida se mantidas as condições prévias e se não for possível repetir a licitação sem prejuízo para a Administração.
• Comprometimento da Segurança Nacional (Art. 75, VI): Nos casos em que a segurança nacional for comprometida e a licitação for considerada prejudicial.
• Guerra, Estado de Defesa, Estado de Sítio, Intervenção Federal, ou Grave Perturbação da Ordem (Art. 75, VII): Contratações urgentes sob estas condições.
• Aquisição ou locação de bens produzidos ou serviços prestados por órgão ou entidade que integre a Administração Pública (Art. 75, IX): Desde que o preço seja compatível com o praticado no mercado.
• Transferência de tecnologia de produtos estratégicos para o SUS (Art. 75, XII): Essencial para o Sistema Único de Saúde.
• Obras de Arte e Objetos Históricos (Art. 75, IV, alínea "k"): Para aquisição ou restauração, desde que sejam compatíveis com a finalidade.
• Contratação de Associações de Pessoas com Deficiência (Art. 75, XIV): Bens e serviços produzidos por estas associações, desde que compatíveis com o preço de mercado.
• Contratação de instituição de ensino, pesquisa, extensão, etc. (Art. 75, XV): Destinada à recuperação social da pessoa presa ou à pesquisa e ensino.
3. Hipóteses de Dispensa Obrigatória (Vinculada) e discricionária (Facultativa)
Embora a fonte não categorize explicitamente todas as hipóteses do Art. 75 como estritamente obrigatórias (vinculadas, que a lei impõe o afastamento da licitação) ou discricionárias (facultativas, que a lei autoriza o afastamento), a maioria das dispensas são facultativas, conferindo à Administração uma margem de liberdade para decidir se opta pela dispensa ou pela licitação, sempre pautada pela análise de vantajosidade e interesse público.
• Dispensa Discricionária (Facultativa): O administrador, após instrução processual devida, decide pela contratação direta se for a medida mais vantajosa ou adequada. Exemplos notórios, que permitem a escolha da Administração, são as contratações em razão do valor (Arts. 75, I e II) e a aquisição ou locação de bens/serviços de órgãos da Administração Pública (Art. 75, IX). Nesses casos, a Administração pode licitar, mas a lei faculta a dispensa.
• Dispensa Vinculada (Obrigatória): Ocorre em situações em que, preenchidos os requisitos legais, a Administração deve realizar a contratação direta. Um exemplo frequentemente citado na doutrina (embora não explicitamente detalhado como "obrigatório" na fonte, mas de natureza vinculada ao preenchimento dos fatos) é a contratação de remanescente de obra, serviço ou fornecimento (Art. 75, XXIV da L. 14.133/2021 - não citado especificamente na lista do material, mas logicamente decorrente da falha do contrato original). Outros casos, como a aquisição de gêneros perecíveis nos termos da lei (Art. 75, IV, "e"), geralmente vinculam a ação da Administração ao risco de perecimento.
Exemplos Práticos com base nas fontes:
• Exemplo de Dispensa por Valor (Facultativa): A aquisição de material de escritório cujo valor total se enquadre no limite do Art. 75, II. A Administração, em vez de instaurar um pregão, pode realizar a contratação direta, desde que justificada a escolha e obtido preço vantajoso.
• Exemplo de Dispensa por Emergência (Vinculada ao Fato): Contratação imediata de empresa para reparo urgente em uma escola após um desastre natural, enquadrando-se no Art. 75, VIII, para evitar a descontinuidade do serviço público essencial.
4. Processo Administrativo de Dispensa
O processo de contratação direta, incluindo a dispensa, deve observar formalidades rígidas para garantir a legitimidade e a transparência. A contratação direta é um processo específico previsto na fase de seleção do fornecedor.
4.1 Motivação e Justificativa Técnica
Todas as decisões e atos administrativos, incluindo a escolha pela contratação direta, devem ser fundamentados e justificados, pautados em critérios objetivos e transparentes, garantindo que o interesse público foi atendido. A motivação é essencial para demonstrar o acerto da escolha administrativa.
No caso da dispensa, a justificação deve ser expressa e circunstanciada, demonstrando:
1. O enquadramento legal preciso na hipótese do Art. 75.
2. A justificativa técnica e econômica que comprove a necessidade da contratação e a vantajosidade do preço, inclusive com a devida pesquisa de preços, observando as condições comerciais praticadas no mercado.
3. A indicação dos créditos orçamentários disponíveis.
4.2 Parecer Jurídico
A unidade de assessoramento jurídico integra a segunda linha de defesa do controle das contratações. Sua atuação é fundamental, pois deve dirimir dúvidas e subsidiar o fiscal com informações relevantes para prevenir riscos na execução contratual. O parecer jurídico deve analisar a legalidade e a conformidade do processo de dispensa com a legislação vigente, contribuindo para a segurança jurídica da decisão.
4.3 Publicação no Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP)
A transparência é um princípio fundamental nas licitações e contratações. O Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) foi criado para centralizar todas as informações sobre licitações e contratos públicos, incluindo as contratações diretas.
A nova lei reforça o dever de publicidade. Embora a fonte mencione a publicação do extrato do termo de extinção no PNCP, o princípio geral da publicidade exige que os atos e informações relativos à contratação sejam divulgados de forma ampla e clara, sendo o PNCP o instrumento central para a divulgação das contratações diretas. A falta de publicação ou o registro inadequado compromete a transparência e o controle social da contratação.
5. Limites de Valores para Contratação Direta (Arts. 75, I e II) e suas Atualizações
Conforme mencionado, os limites de valor para dispensa são previstos nos incisos I e II do Art. 75. Esses limites visam desburocratizar a aquisição de bens e serviços de baixo custo, onde a realização de uma licitação formal seria antieconômica.
É crucial que os gestores compreendam que a NLLCA, em sua redação original, estabelece limites monetários, sujeitos à atualização anual por decreto do Poder Executivo Federal. Essa atualização é essencial para manter o poder de compra e a relevância administrativa dos limites face à inflação e à variação de custos no mercado.
A correta observância desses limites e de suas atualizações é vital para evitar irregularidades, como a fragmentação indevida de despesa.
6. Boas Práticas e Alertas do TCU e da CGU
A gestão e a fiscalização dos contratos devem submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e controle preventivo. Os órgãos de controle, como o TCU, promovem orientações para mitigar a ocorrência de fraudes e desvios, especialmente em contratações diretas que, por natureza, reduzem a competição formal.
6.1 Gestão de Riscos e Governança
A alta administração é responsável pela governança das contratações e deve implementar estruturas e processos de gestão de riscos e controles internos para assegurar um ambiente íntegro e confiável.
O TCU enfatiza a necessidade de Análise de Riscos na fase de planejamento da contratação, o que é essencial para o sucesso da contratação. A análise de riscos deve contemplar:
• Matriz de Riscos: Cláusula contratual (obrigatória em obras de grande vulto ou nos regimes integrado/semi-integrado) que define riscos e responsabilidades, caracterizando o equilíbrio econômico-financeiro inicial. Mesmo em contratações de dispensa mais simples, a identificação dos riscos é uma boa prática para prevenir problemas.
• Prevenção de Preços Excessivos: A governança deve evitar contratações com sobrepreço. A alocação arbitrária de riscos, por exemplo, pode levar à elevação dos preços das propostas, resultando em contratação excessivamente onerosa.
6.2 Alerta contra Fragmentação Indevida
A fragmentação de despesas (divisão de objeto ou serviço para burlar os limites de valor da dispensa) é uma prática combatida pelo TCU. Embora a fonte não use o termo "fragmentação", ela alerta para a necessidade de planejamento prévio e detalhado das contratações e para a importância da demonstração da previsão da contratação no Plano de Contratações Anual (PCA). O PCA, que inclui contratações diretas, é um instrumento de governança que assegura o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias, evitando desvios.
O controle interno e externo também se volta para a individualização das condutas e a observância da segregação de funções, vedando a acumulação de funções que possam gerar conflitos de interesse ou ocultação de erros e ocorrência de fraudes.
A inobservância da correta alocação de riscos ou a falta de fundamentação técnica e econômica pode levar à inexecução do contrato e a prejuízos para a Administração.
7. Resumo Reflexivo e Uso Responsável
A contratação direta por dispensa é um instrumento de gestão pública que, embora legal, deve ser utilizado com extremo rigor e responsabilidade.
A Lei nº 14.133/2021 buscou delimitar os espaços de atuação da Administração, incentivando a deferência dos Tribunais de Contas (TCs) em relação às escolhas administrativas, desde que devidamente motivadas e fundamentadas. Isso implica que o administrador tem maior segurança para tomar decisões, contanto que considere as razões técnicas, os resultados obtidos e as dificuldades reais do contexto (Princípio da Deferência, em consonância com a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB).
O uso responsável da dispensa exige:
1. Fundamentação Inequívoca: Enquadramento claro na hipótese legal do Art. 75.
2. Transparência: Publicação e registro adequados no PNCP e nos autos processuais.
3. Controle Preventivo: Aplicação de práticas contínuas de gestão de riscos para mitigar fraudes e ineficiência.
4. Vantajosidade Comprovada: Demonstração de que o preço é compatível com o mercado, evitando o sobrepreço.
A dispensa de licitação, longe de ser um atalho, é um processo administrativo que exige do gestor e do fiscal o mais alto grau de profissionalismo e conhecimento técnico. O não cumprimento das normas e o descaso com a fiscalização podem levar à nulidade dos contratos e à responsabilização dos agentes públicos.
--------------------------------------------------------------------------------
REFERÊNCIAS
CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Roteiro prático para fiscalização de contratos de prestação de serviços terceirizados. Brasília, 2023.
ESESP. Gestão e Fiscalização Contratual na Lei nº 14.133/21. 2024.
MINISTÉRIO DA ECONOMIA. Manual Operacional de Gestão e Fiscalização Contratual. Portal Gov.br.
PREFEITURA MUNICIPAL DE CLÁUDIA. Manual de Procedimentos Administrativos de Apuração de Infrações Administrativas cometidas por Licitantes e Contratados na Vigência da Lei 14.133/21. Decreto nº 1.061, de 11 de outubro de 2024. Cláudia/MT: 2024.
RODRIGUES, Ricardo Schneider. A lei n.º 14.133/2021 e os novos limites do controle externo: a necessária deferência dos Tribunais de Contas em prol da Administração Pública. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 11, n. 3, p. 161-181, 2021.
TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. Licitações e Contratos: Orientações e Jurisprudência do TCU. (Manual atualizado em 29/08/2024).
ZÊNITE, Equipe Técnica. O que é matriz de risco de acordo com a nova Lei de Licitações? Em quais contratações deve ser definida e quais os instrumentos para tanto? Blog Zênite. Publicado em 25 de maio de 2021.


