Contratações diretas: hipóteses de dispensa e inexigibilidade de licitação - Parte 2

CONTRATAÇÕES DIRETAS: INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO
A licitação é a regra constitucional para as contratações públicas, conforme previsto no artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal, sendo um processo administrativo obrigatório para selecionar a proposta mais vantajosa. Entretanto, a própria Constituição ressalva a possibilidade de contratação direta nas hipóteses garantidas em lei, o que inclui a dispensa e a inexigibilidade de licitação.
1. Conceito e Diferença entre Inexigibilidade e Dispensa (Arts. 74 e 74, §3º da NLLC)
A contratação por inexigibilidade de licitação, prevista no Art. 74 da Lei nº 14.133/2021, ocorre quando há uma inviabilidade de competição. Este é o conceito central da inexigibilidade. Nesses casos, não é possível realizar uma competição objetiva entre interessados, pois o objeto possui características que o tornam singular ou há um fornecedor exclusivo.
Embora as fontes não detalhem o Art. 74, §3º da NLLC, a diferença fundamental entre inexigibilidade e dispensa reside na natureza da competição:
1. Inexigibilidade: Ocorre quando, pela própria natureza do bem ou serviço, não há possibilidade de competição (inviabilidade). A lei traz um rol exemplificativo de situações em que a competição é naturalmente inviável.
2. Dispensa: Ocorre em situações taxativamente previstas em lei (rol fechado), nas quais, embora a competição fosse teoricamente possível, o legislador optou por afastá-la por motivos de valor, urgência ou outras razões específicas.
A inviabilidade de competição, característica essencial da inexigibilidade, revela a inafastabilidade do requisito da singularidade do serviço em contratações sem licitação, demonstrando a impossibilidade de comparação objetiva entre as propostas de interessados.
2. Fundamento Jurídico da Inviabilidade de Competição
O fundamento jurídico que sustenta a inexigibilidade de licitação é a impossibilidade fática ou jurídica de realização do certame. O pressuposto para que a inexigibilidade seja caracterizada é a demonstração inequívoca da inviabilidade de competição.
Na interpretação do Art. 74, III, da Lei nº 14.133/2021, a doutrina sustenta que, apesar de o novo diploma legal não ter repetido expressamente a exigência de "singularidade" do serviço técnico (como fazia a Lei nº 8.666/1993), esse requisito continua inafastável, pois a necessidade de demonstrar a inviabilidade de competição pressupõe a natureza singular do objeto. O serviço deve ser tão único que não permite a comparação objetiva de propostas.
3. Principais Hipóteses de Inexigibilidade
A inexigibilidade abrange situações em que a escolha da Administração recai sobre um objeto ou prestador específico, devido à ausência de outros disponíveis ou comparáveis. Dentre as hipóteses exemplificadas na NLLC, destacam-se:
• Contratação de Profissional do Setor Artístico (Art. 74, II): Embora não detalhado nos excertos, essa hipótese é um exemplo clássico de inexigibilidade, desde que o artista seja consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.
• Serviços Técnicos Especializados de Natureza Predominantemente Intelectual (Art. 74, III): Incluem-se aqui:
◦ Estudos técnicos.
◦ Pareceres, perícias e avaliações.
◦ Serviços de fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras.
• Empresa ou Profissional de Notória Especialização: Para os serviços técnicos especializados, a notória especialização é crucial.
No contexto do Art. 74, III, da NLLC, os serviços de fiscalização, supervisão ou gerenciamento de obras, quando considerados serviços técnicos especializados de natureza predominantemente intelectual, que envolvam profissionais ou empresas de notória especialização, podem ser contratados diretamente por inexigibilidade.
4. Necessidade de Justificativa Técnica e Parecer Jurídico
O processo de contratação direta por inexigibilidade exige rigorosa formalização e motivação, em consonância com o princípio da Motivação.
1. Justificativa Técnica (Motivação): Todas as decisões e atos administrativos devem ser fundamentados e justificados com base em critérios objetivos e transparentes. A Administração Pública deve explicar as razões pelas quais determinada contratação foi realizada e como o interesse público foi atendido. Em contratações diretas, o fundamento técnico é essencial para demonstrar por que o objeto ou o profissional escolhido é o único capaz de satisfazer a necessidade, comprovando a inviabilidade da competição.
2. Parecer Jurídico: O assessoramento jurídico desempenha um papel de apoio e prevenção de riscos. A legislação prevê que os fiscais e gestores podem solicitar o auxílio da assessoria jurídica e do controle interno para dirimir dúvidas e subsidiar decisões que possam prevenir riscos na execução contratual. No entanto, a responsabilidade pela decisão final recai sobre o gestor público, e não sobre o parecerista, exceto em caso de dolo ou fraude comprovada do parecerista.
5. Requisitos Formais do Processo de Inexigibilidade
A contratação por inexigibilidade, como qualquer contratação pública, exige o cumprimento de requisitos formais para garantir a legalidade, a moralidade e a transparência.
Pesquisa de Preços
Embora a competição seja inviável, a pesquisa de preços é indispensável para demonstrar a Vantajosidade e evitar contratações com sobrepreço ou superfaturamento. A pesquisa de preços facilita a verificação de sobrepreços e superfaturamentos.
Comprovação de Exclusividade/Notória Especialização
A inexigibilidade exige a comprovação formal de que o contratado é o único que detém a expertise (notória especialização) ou que é o fornecedor exclusivo, de forma a sustentar a alegação de inviabilidade de competição.
Publicação no PNCP
A transparência é um pilar da NLLC. O Art. 174 da Lei 14.133/2021 instituiu o Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) como o sítio eletrônico oficial para a divulgação centralizada das licitações e contratações públicas. Os atos de contratação direta por inexigibilidade devem ser divulgados no PNCP para garantir a publicidade e o controle social. A fase preparatória da licitação, incluindo as contratações diretas, deve ser planejada, inclusive por meio do Plano de Contratações Anual (PCA).
6. Jurisprudências do TCU e Casos Emblemáticos de Aplicação Irregular
A atuação do Tribunal de Contas da União (TCU) e dos órgãos de controle é fundamental para monitorar a aplicação das regras de contratação direta.
A Exigência de Singularidade pelo TCU
Mesmo após a Lei nº 14.133/2021 não repetir textualmente o termo "singularidade" nos requisitos de serviços técnicos especializados (Art. 74, III), o TCU, em contextos similares (como na Lei das Estatais nº 13.303/2016), já exigiu a singularidade do serviço técnico para caracterizar a inviabilidade de competição (exs.: Acórdão 2.436/2019, Plenário; Acórdão 2.761/2020, Plenário). Isso reforça que a simples notória especialização do profissional não basta; o serviço em si deve ser incomum ou não comparável a outros.
Aplicação Irregular e Falha de Fiscalização
A aplicação irregular da inexigibilidade frequentemente envolve a simulação da inviabilidade de competição ou a ausência de justificativa adequada do preço e da escolha. No contexto mais amplo do controle, a falha ou a ausência de fiscalização adequada pode acarretar responsabilidade civil subsidiária da Administração Pública.
O controle busca, primariamente, evitar contratações com sobrepreço ou superfaturamento. A NLLC (Art. 169) exige práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e controle preventivo. O TCU, no exercício de suas competências, adota a tese das "linhas de defesa" (Art. 169) para triar representações, mas pode acatar denúncias contra irregularidades graves (como ilegalidades manifestas ou corrupção) mesmo que não tenham passado pelas linhas de defesa internas, demonstrando a importância de sua atuação no combate à aplicação irregular das contratações diretas.
7. Resumo Reflexivo: Legalidade, Transparência e Controle na Inexigibilidade
A contratação direta por inexigibilidade de licitação, embora legítima em situações específicas, exige um rigoroso senso de responsabilidade por parte dos gestores públicos.
A legalidade, a transparência e o controle são pilares inegociáveis para o sucesso das contratações públicas. A NLLC busca promover a governança e a integridade nas contratações públicas. O planejamento adequado (incluindo o PCA, que deve abarcar contratações diretas) e a fiscalização efetiva são "pedras de toque" para minimizar o risco de inadimplemento e prejuízos ao interesse público.
A inexigibilidade, ao afastar a competição (e, por consequência, o controle de mercado), impõe ao gestor o dever de ser ainda mais diligente na justificativa da escolha e na pesquisa de preços, garantindo que o interesse público seja atendido com eficiência e probidade.
A alta administração é responsável pela governança das contratações, implementando processos de gestão de riscos e controles internos para avaliar, direcionar e monitorar os processos, promovendo um ambiente íntegro e confiável.
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REFERÊNCIAS
• DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Estrutura geral da nova Lei: abrangência, objetivos e princípios. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (Coord.). Licitações e contratos administrativos: inovações da Lei 14.133 de abril de 2021, Rio de Janeiro: Forense, 2022.
• JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.
• MOTTA, Fabrício. Contratação direta: inexigibilidade e dispensa de licitação. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (Coord.). Licitações e contratos administrativos: inovações da Lei 14.133 de abril de 2021, Rio de Janeiro: Forense, 2022.
• OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos, 12 ed. Rio de Janeiro: Método, 2023.
• PALMA, Juliana Bonacorsi de. Controle Público. Com a edição da nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei 14.133/2021), o Tribunal de Contas da União (TCU) c - Sociedade Brasileira de Direito Público - sbdp.


