Controle externo: papel do TCU, recomendações, apontamentos frequentes - Parte 1

CONTROLE EXTERNO: PAPEL DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU)

Introdução

O Controle Externo é uma função estatal essencial para a República, atuando como guardião da probidade e da economicidade na aplicação dos recursos públicos. O advento da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (NLL), Lei nº 14.133/2021, redefiniu as balizas desse controle, buscando uma atuação mais eficiente e deferente por parte do Tribunal de Contas da União (TCU) e demais Cortes de Contas.

Esta aula visa conceituar o controle externo, detalhar o papel constitucional e as competências do TCU, e analisar como a jurisprudência da Corte tem se moldado diante do novo marco legal, especialmente no que tange à fiscalização das contratações públicas.

1. Conceito de Controle Externo e Fundamentação Constitucional

O controle externo da Administração Pública, no Brasil, é exercido principalmente pelo Poder Legislativo, com o auxílio fundamental dos Tribunais de Contas. Historicamente, após a Constituição Federal de 1988 (CF/88), houve um esforço para fortalecer e detalhar as atribuições dessas Cortes não judiciais, conferindo-lhes um status jurídico e uma estrutura organizacional que se assemelham aos do Poder Judiciário.

1.1 Base Constitucional (Art. 70 a 75 da CF/88)

A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta é exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder, conforme preconiza a Constituição.

A CF/88 ampliou o leque de fiscalização do TCU, que passou a abarcar, ao lado do tradicional controle de legalidade, os controles de legitimidade e de economicidade. Essa ampliação visava uma atuação mais efetiva, indo além do aspecto meramente formalista.

A base constitucional estabelece a fiscalização contínua dos recursos públicos, um dever que visa garantir, dentre outros, a manutenção das condições efetivas da proposta nos contratos administrativos (Art. 37, XXI, CF/88), um princípio fundamental que sustenta o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.

2. O Papel do Tribunal de Contas da União (TCU) na Gestão Pública

O TCU é o órgão de controle externo no âmbito federal e atua como pilar na fiscalização da gestão pública e, em particular, das contratações administrativas. Sua função principal é assegurar que a Administração Pública obedeça aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

Com a NLL (Lei nº 14.133/2021), a atuação do TCU foi formalmente inserida na estrutura de governança das contratações através do modelo das três linhas de defesa.

O TCU integra a terceira linha de defesa, juntamente com o órgão central de controle interno da Administração. A NLL valoriza o controle de forma compartilhada e integrada. Nesse novo paradigma, a ênfase do controle não recai unicamente sobre os órgãos externos, mas também sobre o Princípio da Autotutela e a atuação dos agentes que compõem a primeira e a segunda linhas de defesa.

O TCU tem papel crucial na promoção da transparência e da accountability das contratações. O conceito de accountability pública envolve a obrigação das pessoas (físicas ou jurídicas, públicas ou privadas) que gerenciam recursos públicos de assumir responsabilidades e informar a sociedade sobre o cumprimento de metas e o desempenho alcançado.

3. Principais Competências, Autonomia e Independência

As competências do TCU extrapolam a mera fiscalização, abrangendo aspectos judicantes e consultivos:

3.1. Fiscalização, Julgamento de Contas e Recomendação de Melhorias

O TCU fiscaliza as ações dos administradores públicos, verificando a regularidade e a eficiência na gestão. Ele tem a competência de julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por bens e valores públicos da União.

As decisões do TCU devem ser pautadas por critérios de materialidade, relevância e risco, considerando as razões apresentadas pelos gestores e os resultados obtidos com a contratação. Em casos de mera impropriedade formal, os órgãos de controle, incluindo o TCU, devem adotar medidas para o saneamento e mitigação de riscos, priorizando o aperfeiçoamento dos controles preventivos e a capacitação dos agentes.

A atuação do TCU também se manifesta na capacitação. O Tribunal, por meio de suas escolas de contas, deve promover eventos de capacitação para os servidores e empregados públicos designados para as funções essenciais da Lei nº 14.133/2021.

3.2. Aplicação de Sanções

O TCU possui competência para aplicar sanções. Especificamente, a Corte pode aplicar a declaração de inidoneidade para licitar ou contratar, pelo prazo de até cinco anos, nos termos do art. 46 da Lei nº 8.443/1992.

Essa declaração de inidoneidade aplicada pelo TCU é distinta daquela prevista na Lei nº 14.133/2021, que pode ser imposta pela própria Administração contratante por um prazo mínimo de três e máximo de seis anos. A declaração imposta pelo TCU só pode ser revista mediante o uso dos meios recursais próprios do Tribunal. A aplicação de sanções deve sempre considerar a natureza e a gravidade da infração, as peculiaridades do caso concreto, os danos causados e a existência de programa de integridade, conforme a dosimetria das penas.

3.3. Autonomia, Independência e Deferência

A autonomia e independência funcional do TCU são cruciais para o exercício desimpedido do controle. Contudo, a doutrina recente e o espírito da NLL têm enfatizado a necessidade de deferência por parte dos Tribunais de Contas.

A deferência é o respeito à decisão motivada tomada pelo gestor no uso de sua discricionariedade, evitando que o controlador substitua o juízo de conveniência e oportunidade do administrador por sua preferência pessoal.

O legislador da NLL buscou estabelecer limites ao controle externo, confrontando o que alguns doutrinadores chamam de "hipertrofia do controle" ou "ativismo de contas", que pode gerar o "Direito Administrativo do Medo" — onde o receio de responsabilização paralisa a atuação inovadora dos gestores.

A Lei nº 14.133/2021 impõe que o controlador considere sempre as razões apresentadas pelos órgãos e entidades, assim como os resultados obtidos com a contratação. Além disso, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) reforça esse movimento, exigindo que se considerem os obstáculos e as dificuldades reais do gestor, bem como as consequências práticas das decisões do órgão de controle.

4. Instrumentos de Atuação do TCU

O TCU utiliza diversos instrumentos para exercer sua função fiscalizatória:

Auditorias e Inspeções: São ferramentas diretas de fiscalização operacional, contábil e financeira. Por exemplo, auditorias do TCU frequentemente apontam falhas na gestão e fiscalização de contratos, como a ausência de fiscalização designada ou a inércia administrativa, que resultam em ineficiência e atrasos.

Monitoramentos: Acompanhamento contínuo da gestão e dos contratos, especialmente após a emissão de determinações ou recomendações.

Representações e Denúncias: Qualquer licitante, contratado ou pessoa física ou jurídica pode apresentar representação ao TCU contra irregularidades na aplicação da Lei nº 14.133/2021.

    ◦ Recentemente, o TCU tem buscado racionalizar o acesso a essas instâncias, orientando que o interessado deve se dirigir primeiramente à primeira e segunda linhas de defesa (servidores, agentes de licitação, jurídico e controle interno) antes de acionar o Tribunal (Ac. 1146/2024, implícito). Essa orientação visa evitar o uso abusivo de recursos e duplos esforços de apuração.

Poder Geral de Cautela: O TCU possui o poder de suspender cautelarmente processos licitatórios. Contudo, a NLL estabeleceu limites a esse poder, exigindo que, ao suspender cautelarmente a licitação, o Tribunal defina objetivamente as causas da suspensão e o modo como será garantido o atendimento do interesse público obstado pela suspensão (especialmente em casos de objetos essenciais ou contratação por emergência). O Tribunal deve se pronunciar sobre o mérito da irregularidade em 25 dias úteis, prorrogável uma única vez por igual período.

5. Exemplos de Decisões Emblemáticas do TCU (Impacto na Lei nº 14.133/2021)

A jurisprudência do TCU, mesmo sob a égide de leis anteriores (como a Lei nº 8.666/93 e a Lei nº 10.520/02), estabeleceu diretrizes que permanecem relevantes ou foram incorporadas na Lei nº 14.133/2021.

5.1. Sanções e Responsabilidade dos Gestores

O TCU tem jurisprudência consolidada no sentido de responsabilizar os gestores que se omitem no dever de aplicar penalidades.

• O Acórdão 316/2024-TCU-Plenário (e outros precedentes [1999/2019, 2146/2022] que se aplicam ao novo regime) demonstra que os gestores devem autuar processo administrativo para apenar empresas que pratiquem atos ilegais tipificados no art. 155 da Lei nº 14.133/2021, mesmo que não tenha ocorrido prejuízo ao erário, sob pena de responsabilização do próprio gestor.

• O Tribunal reconhece a possibilidade de responsabilidade solidária das empresas que se aproveitam de orçamentos superestimados, contribuindo para o superfaturamento (Acórdão 8497/2022-TCU – Segunda Câmara).

5.2. Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica

O TCU aplica a teoria da desconsideração da personalidade jurídica para responsabilizar sócios ou administradores pelo dano causado ao erário em casos de abuso da personalidade jurídica, caracterizado por desvio de finalidade ou confusão patrimonial, conforme o Art. 50 do Código Civil.

• O Acórdão 1831/2014-TCU-Plenário estabelece que o abuso pode ser evidenciado pela completa identidade dos sócios entre empresas sucedidas e sucessoras, atuação no mesmo ramo de atividade e transferência integral do acervo técnico, permitindo estender os efeitos da declaração de inidoneidade.

5.3. Reequilíbrio Econômico-Financeiro

Embora a NLL discipline a matriz de riscos como forma de definir o equilíbrio ex ante a jurisprudência tradicional do TCU é relevante para o tema.

• O Acórdão 1466/2013-TCU-Plenário firmou o entendimento de que o desequilíbrio econômico-financeiro deve resultar de um exame global da variação de preços de todos os itens da avença, e não apenas da variação de preços de um insumo isolado.

• O reequilíbrio deve ser concedido apenas se estiver demonstrada a quantificação dos efeitos que extrapolaram as condições normais de execução e que prejudicaram o equilíbrio global do contrato (Acórdão 7249/2016-TCU-Segunda Câmara).

5.4. Diretriz de Deferência

A nova abordagem do TCU sobre o fluxo de denúncias e representações, conforme sinalizado pelo modelo de linhas de defesa, reflete a busca por uma atuação mais deferente, incentivando a resolução interna (autotutela) antes de acionar o Tribunal. No entanto, o Tribunal reconhece que em casos de ilegalidades graves ou corrupção, a atuação imediata do controle externo pode ser requerida, desconsiderando o sequenciamento das linhas de defesa.

6. Resumo Reflexivo: A Importância do Controle Externo para a Transparência e Eficiência

O Controle Externo, personificado no TCU, é indispensável para a governança e a accountability na Administração Pública. Sua atuação é vital para garantir que os recursos sejam aplicados de forma legal e eficiente.

A Lei nº 14.133/2021, ao incorporar o modelo das três linhas de defesa (Art. 169), formaliza uma visão de controle compartilhado, que não diminui o papel constitucional do TCU, mas o reposiciona como a terceira camada, focada em riscos sistêmicos e falhas que não puderam ser resolvidas internamente. Essa nova sistemática é um chamado à autocontenção e à deferência por parte dos controladores, incentivando os gestores a implementar inovações sem o "medo paralisante" de uma responsabilização indevida por mero erro formal.

O espírito da NLL, em conjunto com as diretrizes da LINDB, busca criar um ambiente de segurança jurídica e racionalidade, onde a anulação ou a suspensão de um ato administrativo deve ser considerada como ultima ratio, após a análise das consequências práticas e dos impactos econômicos e sociais (o chamado "estudo do impacto anulatório"). O TCU, ao calibrar sua atuação e focar na indução de melhorias, na capacitação e na repressão de fraudes e danos graves, contribui diretamente para a transparência e para a eficiência da Administração Pública.

Neste novo cenário, o TCU atua como um farol de orientação, assegurando que o navio da Administração não apenas siga a rota legal (legalidade), mas também escolha o caminho mais rápido e seguro (eficiência e economicidade), respeitando, sempre que tecnicamente justificado, o plano de navegação definido pelo próprio comandante (deferência à discricionariedade do gestor).

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REFERÊNCIAS (ABNT)

ACÓRDÃO 1831/2014-TCU-Plenário. Infrações e sanções administrativas – licitantes - Licitações e Contratos".

ACÓRDÃO 4481/2015-TCU-Primeira Câmara. Infrações e sanções administrativas – licitantes - Licitações e Contratos".

ACÓRDÃO 7249/2016-TCU-Segunda Câmara. Reequilíbrio econômico-financeiro (recomposição ou revisão) | Licitações e Contratos".

ACÓRDÃO 8497/2022-TCU – Segunda Câmara. Infrações e sanções administrativas – licitantes - Licitações e Contratos".

ACÓRDÃO 2140/2023-TCU-Plenário. "Gestores e fiscais de contratos administrativos e seu papel como instrumentos de governança pública | Blog da Zênite".

ACÓRDÃO 316/2024-TCU-Plenário. Infrações e sanções administrativas – licitantes - Licitações e Contratos".

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Art. 37, XXI.

BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos.

BRASIL. Tribunal de Contas da União. Licitações e Contratos: Orientações e Jurisprudência do TCU.

RODRIGUES, Ricardo Schneider. A lei n.º 14.133/2021 e os novos limites do controle externo: a necessária deferência dos Tribunais de Contas em prol da Administração Pública. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 11, n. 3, p. 161-181, 2021.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Manual de gestão e fiscalização de contratos. 2. ed. Brasília: STJ, 2023..

PERCIO, Gabriela. O FISCAL DE CONTRATO NA NOVA LEI DE LICITAÇÕES. TCE/SC.

PROF. ALMEIDA, Herbert. Nova-Lei-de-Licitacoes-Esquematizada. 4. ed.