Controle externo: papel do TCU, recomendações, apontamentos frequentes - Parte 3

CONTROLE EXTERNO: APONTAMENTOS FREQUENTES
A gestão e a fiscalização dos contratos administrativos, à luz da Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos — NLLC), transcendem a mera execução formal, inserindo-se em um arcabouço de governança que exige práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e controle preventivo. O controle externo, exercido primariamente pelos Tribunais de Contas (TCs) e órgãos como a Controladoria-Geral da União (CGU), desempenha um papel crucial ao fiscalizar a correta aplicação dos recursos públicos e a eficiência nas contratações. A análise dos apontamentos frequentes desses órgãos constitui uma ferramenta indispensável para o aprimoramento da Administração Pública.
1. O Conceito de Apontamentos do TCU e a Hierarquia das Deliberações
O termo "apontamento" no contexto das auditorias e fiscalizações de contratos administrativos refere-se, tecnicamente, à constatação de uma irregularidade ou falha processual ou de execução identificada pelo órgão de controle, a qual enseja uma ação por parte da Administração fiscalizada.
É fundamental distinguir o apontamento da natureza vinculativa das deliberações proferidas pelos Tribunais de Contas (como o TCU).
• Apontamentos (Irregularidades ou Falhas): São as constatações preliminares ou conclusivas de não conformidade legal, técnica ou de gestão, documentadas em relatórios de auditoria. Tais falhas podem comprometer a transparência e a eficiência nas contratações públicas.
• Recomendações: São orientações de caráter não vinculativo, emitidas pelo órgão de controle, visando ao aprimoramento de procedimentos internos e à mitigação de riscos. A recomendação exara a necessidade de melhoria do processo e solicita medidas corretivas.
• Determinações: São comandos de caráter mandatório, contidos em deliberações (Acórdãos), que impõem à Administração a obrigação de adotar medidas específicas para corrigir irregularidades ou para cumprir a legislação. A inobservância da determinação pode resultar em apuração de responsabilidade e reparação de prejuízos ao erário.
O controle externo visa a garantir que os recursos públicos sejam utilizados de maneira adequada e que as empresas contratadas atendam aos padrões de qualidade esperados.
2. Principais Apontamentos Recorrentes em Auditorias de Contratos Administrativos
As auditorias de órgãos de controle têm identificado reincidência em falhas que comprometem a integridade e a efetividade da execução contratual. Os principais pontos de atenção, que servem como vetores de risco para os gestores, concentram-se nas seguintes áreas:
2.1. Falhas no Planejamento e Elaboração do Termo de Referência (TR)
O planejamento é a fase basilar da contratação, sendo crucial para o sucesso das etapas subsequentes. A falha nessa fase é um dos apontamentos mais recorrentes.
• Inobservância do Estudo Técnico Preliminar (ETP): O ETP é o documento constitutivo da primeira etapa do planejamento, que deve evidenciar o problema a ser resolvido e sua melhor solução, servindo de base para o Termo de Referência (TR) ou Projeto Básico (PB). O ETP deve, obrigatoriamente, conter elementos como a descrição da necessidade e as justificativas para o parcelamento ou não da contratação. Falhas na elaboração do ETP comprometem a viabilidade técnica e econômica da contratação.
• Elaboração Deficiente do Termo de Referência (TR): O TR, documento essencial para a contratação de bens e serviços, deve definir o objeto, quantitativos, prazo, modelo de execução e o modelo de gestão do contrato, que descreve como a execução será acompanhada e fiscalizada. A ausência de detalhamento ou a imprecisão nas especificações restringe a competitividade e pode resultar em contratações ineficazes.
2.2. Ausência de Gestão de Riscos e Controles Internos
A NLLC estabelece que as contratações públicas devem submeter-se a práticas contínuas e permanentes de gestão de riscos e controle preventivo. A inobservância desse mandamento legal é um vetor de apontamentos.
• Deficiência na Gestão de Riscos: A análise de riscos deve ser realizada na fase preparatória, visando a mitigar eventos que possam comprometer o sucesso da licitação e a boa execução contratual. Para contratações de grande vulto ou nos regimes de contratação integrada e semi-integrada, a matriz de alocação de riscos entre contratante e contratado é obrigatória. Para municípios de pequeno porte, identificar todos os possíveis riscos pode ser um obstáculo significativo.
• Fragilidade do Controle Interno: A Lei nº 14.133/2021 organiza o controle em três linhas de defesa. A segunda linha, composta pelas unidades de assessoramento jurídico e controle interno, e a terceira linha, composta pelo órgão central de controle interno e tribunais de contas, são essenciais. É dever dos entes federativos estabelecer regras para os procedimentos de controle interno, observando critérios como materialidade, relevância e risco.
2.3. Fiscalização Deficiente ou Inexistente
A execução contratual exige o acompanhamento e a fiscalização obrigatória por um ou mais fiscais do contrato e pelo gestor, designados conforme requisitos específicos.
• Omissão no Dever de Fiscalizar: A falta de fiscalização e acompanhamento adequado do cumprimento do contrato é um apontamento grave. Os fiscais devem registrar em documento próprio todas as ocorrências na execução. Se o fiscal não possuir conhecimento suficiente para solucionar uma questão, ele não pode alegar mero desconhecimento, mas deve acionar o assessoramento técnico, jurídico ou o controle interno.
• Falta de Aplicação de Sanções: A omissão do gestor em aplicar as sanções cabíveis à contratada por atraso injustificado ou inexecução do contrato é um dever e não uma decisão discricionária, sendo passível de apuração de responsabilidade.
2.4. Irregularidades em Aditivos e Prorrogações
As alterações contratuais (aditivos) e as prorrogações de vigência frequentemente são alvo de apontamentos por falta de formalização ou justificativa robusta.
• Alterações Informais: A modificação contratual sem a devida formalização mediante termo aditivo configura um contrato verbal, o que pode ensejar a apenação dos gestores omissos (Exemplo: Acórdão 1227/2012-TCU-Plenário).
• Prorrogações Sem Vantajosidade: A renovação sucessiva de contratos de serviços e fornecimentos contínuos deve ser formalizada pôr termo aditivo e exige justificativa que ateste a vantajosidade para a Administração, sendo vedadas prorrogações automáticas.
• Retomada Irregular de Contratos Expirados: A retomada de contrato cujo prazo de vigência está expirado é considerada recontratação sem licitação, em afronta à Constituição Federal e à Lei.
• Revisões de Preços Inadmissíveis: Não é juridicamente admissível a revisão de preços sob o argumento de compatibilizá-los aos praticados em outros contratos da entidade, pois isso não implica ruptura do equilíbrio econômico-financeiro (Exemplo: Acórdão 3011/2014-TCU-Plenário). A revisão deve decorrer de evento imprevisível, de cunho anômalo.
2.5. Falhas na Publicidade e Transparência no PNCP
A NLLC reforça o princípio da transparência. O Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) é o sítio eletrônico oficial destinado à divulgação centralizada e obrigatória dos atos exigidos pela Lei.
• Omissão de Publicidade: A não divulgação dos atos no PNCP, especialmente para editais, contratos e seus aditamentos, configura falha grave de transparência e pode levar à nulidade, sendo a publicação uma condição indispensável para a eficácia do contrato.
• Aplicação da NLLC antes da Implantação do PNCP: Embora o PNCP tenha sido implementado em 2021, a Corte de Contas Mineira (TCEMG) esclareceu que sua utilização é obrigatória desde a entrada em atividade, ressalvando a faculdade de aplicação para municípios de até 20 mil habitantes, conforme Art. 176 da Lei.
3. Exemplos de Decisões do TCU e CGU
A jurisprudência dos órgãos de controle reforça o caráter mandatório de boas práticas e a responsabilidade dos gestores:
• TCU – Dever de Sancionar e Atraso na Execução: O Acórdão 2916/2013-TCU-Plenário estabelece que o não cumprimento do contrato enseja a aplicação de sanções à contratada, não sendo uma decisão discricionária dos gestores. Complementarmente, o Acórdão 2714/2015-TCU-Plenário aponta que atrasos na execução são ocorrências de extrema gravidade. Se a Administração der causa ao descumprimento, a responsabilidade deve ser apurada nos gestores. Se a mora for da contratada, o órgão tem o dever de aplicar multas e penalidades previstas em lei.
• TCU – Alterações Contratuais: O Acórdão 1227/2012-TCU-Plenário destacou que a realização de alterações contratuais sem a formalização de termo aditivo configura contrato verbal, que pode resultar em apenação dos gestores por omissão.
• CGU/AGU – Dosimetria das Penalidades: A Controladoria-Geral da União (CGU) e a Advocacia-Geral da União (AGU) orientam que os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade devem guiar a definição dos critérios de aplicação das penalidades, tanto na fase de planejamento (em abstrato) quanto na aplicação in concreto. Essa orientação permite a redução do valor de multa objetivamente apurada, se as circunstâncias do caso justificarem, sem violar o princípio da vinculação ao edital.
4. A Importância da Correção Preventiva e do Aprendizado Institucional Contínuo
A Lei nº 14.133/2021, ao enfatizar o controle preventivo, orienta a Administração a ir além da mera conformidade legal para alcançar o resultado mais vantajoso. Corrigir preventivamente os problemas recorrentes é crucial para:
1. Garantir a Eficiência e Economicidade: O investimento na capacitação e treinamento dos servidores responsáveis pelos procedimentos licitatórios é uma medida preventiva essencial, garantindo o entendimento completo da nova legislação e a condução correta dos processos. A Administração deve identificar as providências a serem adotadas antes da celebração do contrato, incluindo a capacitação para fiscalização e gestão contratual.
2. Mitigar a Paralisia Decisória: O risco de responsabilização ou a tensão entre gestores e órgãos de controle pode levar à "paralisia decisória" – a inibição da atuação criativa e propositiva. A implementação de uma gestão de riscos robusta e de controles proporcionais aos riscos identificados (racionalizando o trabalho e suprimindo rotinas puramente formais) proporciona segurança jurídica ao gestor. Além disso, a Lei assegura defesa aos agentes públicos que agirem em conformidade com parecer jurídico.
3. Fortalecer a Governança: O planejamento detalhado, a avaliação de riscos e o controle preventivo são elementos chave da governança nas contratações, que é responsabilidade da alta administração.
5. Reflexão Prática: O Ciclo de Aprendizado Institucional
O sistema de contratações públicas, complexo e multifacetado, exige que a Administração Pública atue não apenas de forma reativa aos apontamentos do controle externo, mas sim proativamente.
O controle externo funciona como um espelho de alta resolução, revelando as rachaduras sistêmicas que, se não corrigidas, resultam em ineficiência, desperdício e potencial dano ao erário. A resposta estratégica aos apontamentos frequentes não é a simples punição, mas a internalização das "lições aprendidas".
A capacitação contínua e a gestão por competências são o motor desse aprendizado institucional, garantindo que os agentes públicos (gestores e fiscais) estejam aptos a enfrentar os desafios impostos pela NLLC. Os órgãos devem constituir uma base de dados de lições aprendidas durante a execução contratual, para aprimorar as atividades de planejamento e gestão.
Em essência, a recorrência dos apontamentos do controle externo, como falhas no planejamento (ETP/TR), fiscalização deficiente e irregularidades em aditivos, demonstra que a gestão de contratos deve migrar de um foco meramente burocrático e formal para uma abordagem focada em resultados, alinhando a execução contratual ao interesse público e aos objetivos estratégicos da organização. Ao transformar cada apontamento em um insumo de conhecimento, a Administração se torna mais resiliente e, metaforicamente, deixa de apenas apagar incêndios para construir um sistema imune ao fogo.
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REFERÊNCIAS
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