Programa de Integridade e integridade contratual na execução - Parte 1

PROGRAMA DE INTEGRIDADE: PILAR DA GOVERNANÇA E MITIGAÇÃO DE RISCOS NA NOVA LEI DE LICITAÇÕES E CONTRATOS

1. Conceituação do Programa de Integridade e seu Marco Regulatório na Legislação Brasileira

O Programa de Integridade (Compliance) configura-se como um sistema estruturado de mecanismos e procedimentos internos que visa à adequação legal, procedimental e de boas práticas dentro de uma organização. O objetivo primário é o mapeamento e tratamento de riscos, buscando a conformidade e a mitigação de perdas.

A relevância legal do Programa de Integridade no Brasil está fortemente ancorada em dois pilares normativos: a Lei nº 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) e a Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos – NLLC).

A Lei nº 12.846/2013 estabeleceu um novo paradigma ao instituir a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas por atos lesivos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira, incluindo corrupção e fraudes licitatórias, conforme detalhado no Art. 5º. Neste contexto, a lei considera a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades como um fator atenuante na aplicação das sanções.

A Lei nº 14.133/2021 incorpora e expande essa lógica de incentivo ao compliance. A NLLC reconhece formalmente o Programa de Integridade em, pelo menos, três aspectos cruciais:

1. Critério de Desempate: A existência de programas de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle, é um dos critérios a ser considerado no desempate de propostas no julgamento de licitações.

2. Dosimetria das Sanções: O Art. 156, § 1º, V, da NLLC prevê que a implantação ou o aperfeiçoamento de programa de integridade será considerado na dosimetria das sanções aplicáveis ao responsável por infrações administrativas.

3. Condição de Reabilitação: Para as infrações mais graves, como a apresentação de declaração ou documentação falsa, ou a prática de ato lesivo previsto na Lei nº 12.846/2013 (Art. 155, incisos VIII e XII, da NLLC), a implantação ou aperfeiçoamento do programa de integridade é uma exigência cumulativa e obrigatória para a reabilitação do licitante ou contratado perante a autoridade punidora.

Essa integração normativa reforça o papel do compliance não apenas como ferramenta preventiva, mas também como mecanismo de recuperação e mitigação da penalidade.

2. Governança, Transparência e Ética no Contexto das Contratações Públicas

A adoção de Programas de Integridade está intrinsecamente ligada à necessidade de fortalecimento da Governança Pública. A governança corporativa, no sentido mais amplo, é o sistema pelo qual as organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, sendo que boas práticas fomentam e salvaguardam os ativos, contribuindo para a qualidade da gestão.

A NLLC promove um avanço significativo ao reorientar o foco do procedimento de contratação, passando da primazia no combate à corrupção (característica da Lei nº 8.666/1993) para a ênfase na governança e obtenção de resultados.

O princípio da transparência é expressamente previsto no Art. 5º da NLLC, ao lado da probidade administrativa e da eficiência. A governança eficiente implica a implementação de mecanismos que promovam a transparência, o controle e a responsabilização (accountability) nas diversas etapas dos processos.

Nesse contexto, os programas de integridade criam uma cultura de ética e conformidade, atuando como ferramentas essenciais para reduzir o risco de práticas ilícitas e fortalecer a confiança nas relações entre os setores público e privado. A alta administração, por sua vez, é responsabilizada pela governança das contratações e deve instituir processos e estruturas, inclusive de gestão de riscos e controles internos, para monitorar a integridade dos processos.

3. Elementos Estruturantes de um Programa de Integridade Eficaz

Para que um Programa de Integridade seja considerado eficaz e mereça a atenuação de penalidades, ele deve ser robusto e efetivamente implementado, não existindo apenas no plano formal. A Portaria CGU nº 1.214/2020 (que trata da dosimetria de penalidades) estabelece parâmetros cruciais para essa avaliação:

1. Comprometimento e Suporte da Alta Direção: A liderança da empresa deve demonstrar envolvimento e compromisso inquestionável com a promoção da integridade, estabelecendo que o compliance é uma prioridade institucional.

2. Análise de Riscos (Risk Assessment): O programa deve prever uma avaliação de riscos para identificar vulnerabilidades e áreas de maior suscetibilidade a atos lesivos, orientando a adoção de medidas preventivas e corretivas.

3. Políticas Internas e Controles: Implementação de controles internos eficazes para que as operações sejam conduzidas em conformidade com normas e regulamentos.

4. Treinamento e Capacitação: Devem ser realizados treinamentos periódicos a todos os funcionários, especialmente em posições estratégicas, para que compreendam as políticas de compliance e as consequências de práticas ilícitas.

5. Canais de Denúncia (Whistleblowing): A disponibilização de canais seguros e confidenciais é vital para que os colaboradores possam denunciar irregularidades sem medo de retaliação, garantindo que a empresa possa detectar e corrigir desvios. O desenvolvimento de um programa de reportantes é igualmente importante para o controle.

6. Monitoramento e Auditorias Contínuas: Deve haver um sistema contínuo de monitoramento e auditorias periódicas para garantir o seguimento das políticas e a correção eficiente de eventuais falhas.

7. Aplicação de Sanções Internas: O programa deve prever a aplicação de sanções disciplinares internas para aqueles que violarem as normas de compliance, reforçando a seriedade da integridade no ambiente corporativo.

4. Relação entre Integridade e Gestão Contratual na Redução de Riscos

A interligação entre integridade e gestão contratual é um dos vetores centrais da Nova Lei de Licitações. O programa de compliance atua diretamente na prevenção e mitigação de riscos de corrupção e fraudes.

A Lei nº 14.133/2021 exige que a fase preparatória da licitação, caracterizada pelo planejamento, inclua a análise de riscos que possam comprometer a boa execução contratual. A alta administração deve implantar processos de gestão de riscos para avaliar, direcionar e monitorar os procedimentos.

O Programa de Integridade é o instrumento pelo qual a empresa contratada (ou licitante) internaliza os controles e apoia a Administração nesse gerenciamento preventivo. Empresas com compliance robusto e eficaz tendem a ter menos problemas de inexecução ou irregularidades, pois o mapeamento de riscos auxilia na identificação de vulnerabilidades e na promoção de ações corretivas e preventivas.

A adoção dessas práticas de governança e compliance resulta em maior eficiência administrativa e na proteção dos recursos públicos, pois a Administração concentra-se em ações preventivas, evitando fraudes e desvios que levariam a sanções e disputas jurídicas. A fiscalização contratual, sendo uma obrigação fundamental da Administração para garantir o interesse público, é facilitada quando o contratado já possui mecanismos de compliance que asseguram a conformidade legal e a qualidade da execução.

5. Boas Práticas e Referenciais Normativos

O arcabouço normativo brasileiro, impulsionado pela CGU, alinha-se às práticas globais de governança.

Boas Práticas Nacionais:

A Controladoria-Geral da União (CGU) tem um papel central ao fornecer orientações e manuais, como o Manual de Responsabilização de Entes Privados, para apoiar a implementação e avaliação dos programas de integridade. A Portaria CGU nº 1.214/2020 estabelece parâmetros claros para a avaliação da robustez do programa, visando sua eficácia.

No âmbito público, a Portaria SEGES/ME nº 8.678/2021 estabeleceu diretrizes de governança para a Administração Pública federal direta, autárquica e fundacional, incluindo a modelagem do processo sancionatório e a previsão de implantação de programas de integridade para objetos de grande vulto. O estado de Minas Gerais, por exemplo, instituiu o Plano Mineiro de Promoção da Integridade (PMPI) para sistematizar a gestão de riscos, controles internos e boa governança.

Referenciais Internacionais:

O esforço brasileiro em regulamentar o compliance reflete o alinhamento com as melhores normas internacionais de governança. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que historicamente influenciou as diretrizes de governança na área pública, recomenda políticas de integridade como meio eficaz de prevenir a corrupção e promover a transparência nas contratações públicas.

Embora não detalhada nas fontes, a menção de alinhamento a padrões internacionais e a valorização do sistema de gestão antissuborno (como a ISO 37001) reforçam a busca por um modelo que garanta a integridade, seguindo as diretrizes de organismos multilaterais.

6. Conclusão Reflexiva: A Consolidação da Cultura de Integridade

A Lei nº 14.133/2021 estabeleceu um arcabouço legal que proporciona maior objetividade e segurança jurídica na aplicação de sanções e valoriza, de maneira inédita na legislação de licitações, o papel dos Programas de Integridade. Ao considerar o compliance como um fator atenuante, a lei incentiva a autorregulação e a adoção de um comportamento mais ético e transparente por parte das empresas.

Contudo, a efetividade das disposições legais depende, fundamentalmente, da institucionalização de uma nova cultura na Administração Pública, que deve superar barreiras e quebrar paradigmas. A integridade deve ser internalizada, deixando de ser apenas um conjunto de procedimentos formais para se tornar parte integrante da cultura organizacional.

A reorientação do foco para a governança e os resultados exige que a Administração priorize ações proativas, como a capacitação contínua dos agentes públicos envolvidos na gestão e fiscalização contratual. A fiscalização deficiente resulta em perda de oportunidades e desperdício de recursos. Somente mediante a atenção permanente dos dirigentes na retenção e qualificação de servidores aptos é possível garantir a boa governança e o atingimento dos objetivos contratuais. A consolidação de uma cultura de integridade e responsabilidade institucional, assim, é o caminho para o aprimoramento dos controles internos e o combate efetivo à fraude e à corrupção.

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REFERÊNCIAS

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