Simulações práticas de gestão de contratos e resolução de problemas - Parte 2

RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS NA GESTÃO CONTRATUAL

 

A fase de execução contratual, marco final do metaprocesso de contratação pública, é reconhecida como um dos principais pontos de fragilidade da Administração Pública, sendo frequentemente apontada pelos tribunais de contas como origem de falhas estruturais, ilegalidades, ineficiências e prejuízos ao erário. A Gestão Contratual sob a égide da Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos – NLLC) exige uma postura proativa e o domínio de ferramentas jurídicas e administrativas para a eficiente resolução e, idealmente, a prevenção de impasses.

1. OS PRINCIPAIS DESAFIOS E PROBLEMAS NA EXECUÇÃO

O gerenciamento de contratos na Administração Pública envolve a vigilância permanente da execução, sob pena de comprometer o objetivo final da contratação. Os problemas mais recorrentes surgem do desvio das obrigações pactuadas, manifestando-se em diversas formas:

1.1. Inexecução e Inadimplemento Contratual: A inexecução ou inadimplência ocorre quando uma das partes, geralmente a contratada, não cumpre total ou parcialmente as obrigações previstas no contrato. Isso abrange falhas na entrega do objeto, descumprimento de prazos, ou execução insatisfatória de serviços. A NLLC prevê que o licitante ou o contratado será responsabilizado administrativamente por infrações como: dar causa à inexecução parcial do contrato (mesmo que não cause grave dano); dar causa à inexecução parcial que cause grave dano à Administração; ou dar causa à inexecução total do contrato.

1.2. Má Execução e Divergências Contratuais: A má execução é identificada quando o produto, serviço ou obra não está em conformidade com as especificações técnicas, padrões de qualidade ou requisitos estabelecidos no contrato. Nesse cenário, o fiscal é responsável por solicitar correções ou ajustes. A verificação de qualidade é uma atribuição essencial do fiscal. O gestor, por sua vez, deve observar a necessidade de realizar glosas, que são a supressão ou retenção de valores devidos, aplicadas quando há falhas ou imperfeições que justificam o não pagamento integral.

1.3. Atrasos e Falhas de Comunicação: O atraso injustificado na execução sujeita o contratado à multa de mora, conforme previsto no edital ou contrato. A gestão inadequada pode resultar em insegurança e atraso na execução do objeto.

Em relação às falhas de comunicação, embora não explicitamente tipificadas, a inércia administrativa ou a dificuldade em centralizar informações podem levar a problemas. O gestor do contrato é o responsável por centralizar a comunicação e solicitar informações aos fiscais de contrato, fornecedores e demais envolvidos no processo.

2. A IMPORTÂNCIA DA PREVENÇÃO: GESTÃO DE RISCOS E DIÁLOGO CONTRATUAL

Para prevenir litígios e evitar a materialização de problemas, a NLLC reforça a importância de mecanismos preventivos já na fase de planejamento, com destaque para a Gestão de Riscos e o diálogo constante.

2.1. Gestão de Riscos (Análise de Riscos e Matriz de Riscos) toda contratação requer uma prévia análise de riscos (obrigatória, conforme Art. 18, inciso X, da Lei nº 14.133/2021) que identifica e trata os riscos da licitação e da contratação.

A ferramenta crucial para a execução é a Matriz de Riscos. A matriz de riscos é uma cláusula contratual cuja função é formalizar a alocação eficiente de riscos entre a Administração (contratante) e o contratado, definindo a responsabilidade de cada parte. Nela são registrados eventos supervenientes à assinatura do contrato que possam impactar o equilíbrio econômico-financeiro.

Fundamento e Efeito: A repartição de riscos não pode ser arbitrária, mas deve ser fundamentada em razões técnicas e econômicas. Ela deve ser observada na solução de eventuais pleitos das partes, e se as condições da matriz forem atendidas, o equilíbrio econômico-financeiro será considerado mantido, renunciando as partes aos pedidos de reestabelecimento relacionados aos riscos assumidos.

Contratações Complexas: Para obras e serviços de grande vulto ou regimes de contratação integrada ou semi-integrada, a matriz de riscos é obrigatória no edital.

2.2. O Diálogo Contratual O diálogo contratual (ou postura colaborativa) é essencial para a governança contratual. Uma prática fundamental para iniciar esse diálogo é a Reunião Inicial. Nessa reunião, o gestor, fiscais, e o representante da contratada (preposto) alinham procedimentos, definem metodologias e saneiam dúvidas.

O Registro de Ocorrências é a base do diálogo formal. O fiscal anota em registro próprio todas as ocorrências e determina o necessário para a regularização de faltas ou defeitos. Essas anotações devem ser comunicadas ao gestor, que é o responsável por receber as dúvidas e questionamentos da fiscalização e da contratada.

3. FERRAMENTAS DE RESOLUÇÃO ADMINISTRATIVA DE CONFLITOS

A NLLC inovou ao prever, explicitamente, meios alternativos de resolução de controvérsias na gestão contratual, além dos instrumentos tradicionais de alteração e ajuste.

3.1. Meios Alternativos de Resolução de Controvérsias (Art. 151 da Lei nº 14.133/2021) A Lei nº 14.133/2021 permite a utilização de meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas (dispute resolution board - DRB) e a arbitragem.

Esses meios podem ser aplicados a controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, incluindo:

• Questões relativas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

• O inadimplemento de obrigações contratuais por qualquer das partes.

• O cálculo de indenizações.

• A arbitragem deve ser sempre de direito e observar o princípio da publicidade.

3.2. Negociação Direta, Apostilamento e Termo Aditivo

A negociação direta e a formalização de alterações são instrumentos essenciais na rotina do gestor para resolver impasses de execução.

Apostilamento: É um documento simplificado utilizado para registrar questões de menor relevância que não envolvem impacto econômico ou alterações contratuais significativas. Exemplos incluem a variação do valor para fazer face ao reajuste ou repactuação de preços, atualizações financeiras, ou alterações na razão social. O cronograma de execução também pode ser prorrogado automaticamente por simples apostila em caso de impedimento, ordem de paralisação ou suspensão do contrato.

Termo Aditivo: É o instrumento formal para modificações contratuais significativas, como prorrogações de prazo, ajustes de valor ou alterações no objeto. Se houver alteração unilateral que aumente ou diminua os encargos do contratado, a Administração deverá restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro inicial no mesmo termo aditivo.

Repactuação: É uma forma de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro em serviços contínuos com dedicação exclusiva ou predominância de mão de obra, feita mediante demonstração analítica da variação dos custos contratuais.

3.3. Atuação Preventiva do Controle Interno (Apoio e Assessoria) A atuação do Controle Interno (como as Controladorias Gerais do Município - CGM) é crucial na prevenção de problemas, não só elaborando manuais e diretrizes para a boa gestão, mas também oferecendo suporte consultivo.

Na execução, o fiscal e o gestor do contrato não podem alegar mero desconhecimento como forma de afastar sua responsabilidade, mas podem acionar o assessoramento técnico de apoio, jurídico ou do controle interno para dirimir dúvidas e subsidiá-los com informações relevantes para prevenir riscos na execução contratual. A assessoria jurídica e de controle interno deve dirimir dúvidas e subsidiar o fiscal com informações relevantes.

4. BOAS PRÁTICAS E ORIENTAÇÕES DOS ÓRGÃOS DE CONTROLE

O Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria-Geral da União (CGU) fornecem orientações importantes para a resolução eficiente de impasses:

4.1. TCU sobre Gestão de Riscos e Projetos O TCU enfatiza a importância da Matriz de Riscos, especialmente em contratações complexas. Em contratos integrados, por exemplo, é imprescindível a inclusão da matriz detalhada no instrumento convocatório para alocar os riscos inerentes ao empreendimento (Acórdão 2980/2015-TCU-Plenário).

Em situações de Contratação Integrada, o contratado deve assumir os encargos resultantes de erros, incompletudes ou omissões do anteprojeto, caso não haja alocação objetiva de riscos no edital (Acórdão 544/2021-TCU-Plenário). O TCU entende que a ausência da Matriz de Riscos não isenta o contratado de suportar eventuais encargos decorrentes das soluções adotadas na elaboração do projeto básico, que são áleas ordinárias desse regime (Acórdão 2903/2016-TCU-Plenário).

4.2. Dosimetria e Responsabilização Em caso de inexecução que leve à aplicação de penalidades, a NLLC (Art. 156, § 1º) e a jurisprudência dos órgãos de controle exigem que a dosimetria das sanções considere:

1. A natureza e a gravidade da infração cometida.

2. As peculiaridades do caso concreto.

3. As circunstâncias agravantes ou atenuantes.

4. Os danos que dela provierem para a Administração Pública.

5. A implantação ou o aperfeiçoamento de programa de integridade.

A CGU, por exemplo, disponibiliza modelos para o Manual de Responsabilização de Entes Privados e Sugestões de Escalonamento das Circunstâncias Agravantes e Atenuantes para auxiliar na correta dosimetria das penas.

4.3. Boas Práticas na Fiscalização Trabalhista Para evitar a responsabilização subsidiária da Administração Pública em contratos de serviços contínuos com dedicação exclusiva de mão de obra (onde a falha na fiscalização pode levar à responsabilidade pelos encargos trabalhistas da contratada), a NLLC e as orientações dos órgãos de controle, como o TCU, exigem cautelas específicas:

• Exigir caução, fiança bancária ou seguro-garantia para verbas rescisórias.

• Condicionar o pagamento à comprovação de quitação das obrigações trabalhistas vencidas.

• Realizar depósito de valores em conta vinculada (mecanismo que permite à Administração realizar o pagamento direto das verbas trabalhistas não quitadas, deduzindo do valor devido ao contratado).

• O gestor e o fiscal são vedados de exercer poder de mando sobre os funcionários da contratada.

CONCLUSÃO: A POSTURA COLABORATIVA E TRANSPARENTE DO GESTOR PÚBLICO

A Resolução de Problemas na Gestão Contratual transcende a mera aplicação de sanções. Sob o regime da NLLC, exige-se do gestor público uma postura colaborativa, transparente e técnica.

A execução contratual é um pilar da governança pública, e o bom desempenho das funções de gestão e fiscalização é a chave para a obtenção do interesse público. O gestor, com sua visão administrativa abrangente, e o fiscal, com seu perfil técnico de campo, devem atuar de forma conjunta e complementar.

A transparência e a ética devem nortear todas as interações. A diligência do gestor, ao organizar a documentação, monitorar o físico-financeiro e manter um registro cronológico das ocorrências, constrói a segurança jurídica necessária para a tomada de decisões, inclusive para a aplicação justa e fundamentada de penalidades.

A adoção de instrumentos como a Matriz de Riscos e os meios alternativos de resolução de conflitos (mediação, conciliação e comitê de resolução de disputas) demonstra um amadurecimento na gestão pública, priorizando a manutenção do vínculo contratual e a consecução do objeto, em detrimento do litígio oneroso.

Em última análise, o gestor eficaz não é aquele que apenas pune o erro, mas sim aquele que, por meio do planejamento rigoroso, do diálogo constante e da utilização de ferramentas de governança e riscos, evita que o erro se materialize, garantindo o uso eficiente dos recursos e a entrega satisfatória das políticas públicas.

A gestão de contratos é como conduzir um navio em águas turbulentas: a gestão de riscos é o mapa que antecipa as tempestades, o diálogo é a comunicação clara entre a tripulação (Administração) e o navio (Contratada), e as ferramentas de resolução são as rotas alternativas, garantindo que, mesmo diante de desvios (problemas), o objetivo final (o interesse público) seja alcançado.

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REFERÊNCIAS

MACEDO, Alessandro. Lei 14133/2021: Enfoque nos contratos administrativos. TCE/BA.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Licitações e Contratos: Orientações e Jurisprudência do TCU.

PÉRCIO, Gabriela. A Decisão TCEMG e a Discussão Sobre os Limites às Alterações Consensuais nos Contratos Administrativos. In: Blog da Zênite.

PONTA PORÃ (Município). CONTROLADORIA GERAL DO MUNICÍPIO. Manual de Fiscalização e Gestão Contratual: Lei 14.133/2021. Ponta Porã/MS, agosto de 2025.

RIGOLIN, Ivan Barbosa. Nulidade dos contratos (Lei nº 14.133/21, Arts. 147 a 150). ACOPESP. jul/24.

TORRES, Ronny Charles L. Guia Gestor e Fiscal de Contrato. Prefeitura do Jaboatão dos Guararapes, 2023.

ZÊNITE. Gestores e fiscais de contratos administrativos e seu papel como instrumentos de governança pública. Blog da Zênite. 30 jun. 2025.